Um dos textos que mais tem recebido críticas nas lides espíritas - tanto por opositores quanto por estudiosos do espiritismo - tem sido aquele referente à teoria da beleza, publicado como um capítulo do livro Obras Póstumas.
Antes que tudo importa esclarecer a natureza dos textos que deram origem ao livro Obras Póstumas.
Os textos não foram publicados por Allan Kardec, são compilações de seus rascunhos que, após sua morte, foram publicadas por seus admiradores. O fato é importante por que ressalta não terem os textos passados pelo crivo de análise que sempre marcou as publicações kardequianas.
Dito isto, cabe voltar à matéria da teoria da beleza para encontrar as justificativas pelas quais Kardec trataria do assunto.
O tema envolve uma análise detalhada de dois problemas que desapareceram em nosso cenário cultural moderno: (a) O problema da Beleza - relegado ao ostracismo pela influência cultural do consumismo, o qual passou a ditar os padrões de beleza praticados; e (b) A frenologia - um problema considerado científico no século XIX, e contra o qual Kardec escreveu o texto da Teoria da Beleza em virtude das implicações éticas que ela gerava à luz do entendimento do homem como um ser espiritual.
A frenologia foi relegada ao plano dos erros da ciência, mas ao lermos os textos de Obras Póstumas fora do contexto cultural do século XIX, perdemos o problema contra o qual Kardec se posicionava. Neste texto tentaremos recuperar o problema enfrentado e a solução proposta pelo professor Rivail (Allan Kardec).
Iniciemos considerando o conceito de Beleza.
A enciclopédia de filosofia de Stanford afirma que o conceito sobre a natureza da beleza é um dos mais difíceis e controversos na filosofia ocidental. A beleza é um valor primitivo igual ao conceito de verdade, bondade e justiça. Principalmente o conceito de beleza tem sido debatido com um problema que oscila entre critérios objetivos e subjetivos, sempre influenciados por fortes fatores culturais.
Os argumentos centrais sobre a beleza descrevem-na subjetivamente como um atributo que é percebido conforme a opinião de quem a observa - neste contexto a beleza seria um conjunto de atributos esperados por quem a procura - ou objetivamente como se a Beleza tivesse fundamentos em uma Forma primitiva que, sendo a Forma das Formas Belas, define critérios para uma avaliação objetiva da beleza.
No final do século XIX o conceito de beleza começou a ser associado ao de prazer. Jonh Lock, filósofo inglês, passou a descrever a beleza como aquilo que oferece prazer ao intelecto, contrastando com o conceito de beleza clássico em que medidas e proporções definiam os critérios do que seja o Belo. O homem vitruviano - desenho de Leonardo DaVinci que mostra as proporções humanas propostas pelo arquiteto romano Marcus Vitrúvio, expressaria a objetividade das proporções do belo, que deveria ser seguidas para a produção artísticas de então. Desde o Renascimento italiano a ideia central da beleza é a da proporção perfeita. Na figura humana como na construção do edifício, esta época se esforçou para conseguir a imagem da perfeição.
Desde a ideia platônica de beleza como forma perfeita, o problema da identidade do Belo encontrou um forte fundamento nas crenças e fundamentos das sociedades. Não foi diferente no século XIX. O século XX, marcou uma transição do conceito de beleza para a noção de utilidade. O belo passou a associar-se tanto ao prazer quanto ao que é útil.
Um movimento que merece destaque no século XIX é o movimento da frenologia. É contra as implicações éticas que a frenologia provoca que Kardec escreveu o texto mencionado em Obras Póstumas como Teoria da Beleza. A abordagem do ensaio - o qual não foi concluído e aprovado pelo próprio Kardec - adota a seguinte linha de argumentação, considerada no século XIX:
Se considerarmos verdadeira a posição da frenologia que determina que os aspectos morais são determinados pelas características físicas;
Então deveremos considerar ser verdadeiro o conceito europeu relativo à inferioridade de outros povos (entre eles os da raça negra) uma vez que suas características físicas diferem dos padrões de progresso proclamados pela frenologia como se refletindo na configuração física do indivíduo.
Se o padrão das formas determina, como reza a frenologia, o padrão de comportamento, e o comportamento determina a evolução da alma, como proclama o Espiritismo;
Então, sendo verdadeira a frenologia e o espiritismo, a raça negra não atende ao padrões de beleza e, consequentemente, só poderia receber espíritos atrasados.
Na atualidade é fácil perceber que o argumento é falso. O problema da frenologia não pode ser tratado como um problema verdadeiro e, portanto suas conclusões são irrelevantes. Este fato anula todo o argumento. Mas quando Kardec escreveu o texto o problema parecia relevante. Daí a tese apresentada no texto da Teoria da Beleza (texto que ainda estava sob elaboração quando Kardec faleceu) apontava para a imortalidade da alma e a sua progressão, portanto a defesa era a de que mesmo que a alma fosse atrasada - como queria a frenologia - ela era suscetível de progresso.
Analisemos um pouco mais a frenologia. No século XVIII, Jean Gáspar Lavater tornou-se conhecido por estudar a Fisiognomia, versando sobre a aparência externa do indivíduo e seus aspectos psicológicos. Dentro desta linha de pensamento surgiu a FRENOLOGIA, como um estudo que pretendia descrever o caráter de um indivíduo através da análise da forma de seu crânio. O pesquisador italiano Cesare Lombroso, na sua obra L’uomo delinquente (O Homem Delinquente), em 1876, parte da análise de 6000 casos, no período em que foi diretor de um presídio. O cientista italiano sustentava que os delinquentes tendiam a possuir certas características físicas particulares como o tamanho da mandíbula, as orelhas, as palmas das mãos, por exemplo. Para Cesare Lombroso, representante do chamado Período da Antropologia Criminal, os fatores individuais, ou endógenos eram preponderantes na conduta do delinquente, assim o atavismo resultava no chamado criminoso-nato. Os estudiosos da Frenologia, os chamados frenólogos eram à época, constantemente chamados em Juízo para deporem como peritos. Contudo, tal teoria foi caindo em desuso e hoje em dia a Frenologia é tida como exemplo de uma pseudociência.
Os fundamentos da Frenologia foram definidos por Franz Joseph Gall (1758-1828):
O cérebro é o órgão da mente.
A mente é composta por vários e distintos, faculdades inatas.
Porque eles são distintos, cada faculdade deve ter um assento separado ou “órgão” no cérebro.
O tamanho de um órgão, outras coisas sendo iguais, é uma medida de seu poder.
A forma do cérebro é determinado pelo desenvolvimento de vários órgãos.
À medida que o crânio toma a sua forma a partir do cérebro, a superfície do crânio pode ser tomado como um índice precisas de aptidões psicológicas e tendências.
É deste aparato teórico que de deriva a noção de que certas propriedades do corpo devem indicar certas propriedades psicológicas - o que era aceito como verdade científica no século XIX.
Para contrastar com o tema, aceito pela comunidade científica, Allan Kardec, em um ensaio que ele não publicou em vida, e que apareceu na forma de um rascunho em Obras Póstumas, defende uma teoria da Beleza à luz do espiritismo. Neste texto ele considera que
As características psicológicas estão na alma e não no corpo.
Se o corpo indica propriedades psicológicas específicas - a tese central da frenologia, isto se deve ao fato de o Espírito vinculado áquele corpo possuir tais características.
Estando certa a FRENOLOGIA, haveria uma relação direta entre a forma do corpo e o aperfeiçoamento da alma.
A (teórica) primitividade dos corpos menos belos não seriam definitivas pois o progresso alcança todos os espíritos.
Concluímos então que, ensaiando uma conciliação entre os conceitos (pseudo)científicos da frenologia e um ensaio sobre a beleza, Kardec pretendia analisar o problema á luz da imortalidade da alma e seu progresso.
Hoje sabemos que não há relação entre as características físicas e morais, que não temos conceitos absolutos de beleza e que o texto de obras póstumas está equivocado em sua estrutura de pressupostos e no desenvolvimento de sua argumentação. Portanto poderíamos aplicar àquele texto, como se aplicou à própria frenologia, as palavras do próprio Allan Kardec:
Se a Ciência demonstrar que o Espiritismo está errado em algum ponto, ele se modificará neste ponto e seguirá com a Ciência.
11 de junho de 2015