Os gêmeos de 4 anos, Mazen e Bilal, filhos do casal Mahmoud e Jamila: uma família síria refugiada na Suécia. Foto Anistia Internacional(3)
De todas as tragédias vividas em 2016, assistir a crianças em zona de guerra através dos recursos modernos de comunicação como as redes sociais(1), é talvez a mais impactante de todas elas. Uma realidade tão crua que beira o surreal, que nos faz confundir perigosamente a realidade com uma ficção de horror.Nenhuma tragédia se aproxima a ter os sonhos, esperanças e inocência roubados pelo flagelo da guerra. Crianças não são muçulmanas, cristãs ou judias, crianças não são terroristas, crianças não tem partido político ou bandeiras ideológicas, crianças são apenas crianças, crianças são promessas de um futuro que pode vir a ser lindo ou pode tornar-se trágico como no caso de terroristas que um dia foram crianças.
Não é o simples fato de viver em determinada cultura, religião ou país o que torna alguém um terrorista, afinal, terroristas representam um percentual mínimo da população. Eles existem em qualquer lugar e são de qualquer origem. Existem muitas causas para alguém se tornar um terrorista, temos visto até mesmo jovens ocidentais que se radicalizam(2), mas na raiz de todas as causas encontramos crianças com as esperanças roubadas e um ambiente onde se alimenta o medo que gera o ódio.
São também as barreiras que se levantam no mundo que distanciam as pessoas e povos, que permitem desumanizar o outro. É mais fácil odiar quem não conhecemos, pelo simples fato de pertencer a outra religião, país ou periferia. Quando nos distanciamos humanamente uns dos outros, olhamos para aquelas crianças mortas na praia ou cobertas de pó, sem pais, sem palavras e sem esperança, apenas como um filme de horror sobre o qual nada podemos fazer. Os menos sensíveis nem sequer param para pensar no assunto, ou até se satisfazem com a matança por acreditar que aquelas crianças são a semente do mal, futuros terroristas. Talvez, por causa dessa distância, um dia, para alguns deles nós também não seremos pessoas tão reais, seremos apenas infiéis, apenas um número, apenas um alvo.
Família síria se abraça emocionada após desembarcar viva na ilha de Kos, na Grécia. Foto de Daniel Etterv(5)
Os muros e as grades não nos protegem de nada. Na verdade, eles são uma ilusão que nos oferecem a falsa sensação de segurança, um falso remédio vendido por políticos populistas que manipulam o medo das massas. Os muros não nos permitem ver o outro e que o outro nos veja em nossa humanidade. Eu sei do que estou falando porque vivo em um país em desenvolvimento onde campeia outro tipo de violência. Cresci em um bairro vizinho a uma favela e vi a violência crescer na periferia onde eu circulava desde sempre. Um dia, não faz muito tempo, tive meu carro cercado por jovens assaltantes, fortemente armados… baixei a janela calmamente, um deles me reconheceu e imediatamente desistiu do assalto.
Naquele momento quando não havia polícia nem segurança pública, nem muros, nem carros blindados, nem proteção armada, o que me salvou foi a proximidade e não a distância. Foi o fato deles me reconhecerem como pessoa que os fez desistir da ação. Não estou eximindo o poder público de suas responsabilidades com relação a segurança dos cidadãos, nem que a solução do problema da violência seja fazer amizade com todos os criminosos da cidade. Aquela minha experiência tem um valor simbólico que nos permite questionar se a estratégia do isolamento é de fato a melhor estratégia para manter-nos seguros em um mundo onde as fronteiras já não representam impedimento algum, em um mundo onde terroristas conseguem tomar um avião e o lançar sobre o coração da mais poderosa potência do mundo.
Não sou um especialista no assunto, mas tenho plena convicção que expulsar e discriminar pessoas por suas crenças e origens só trará um efeito negativo exponencial. Não se trata simplesmente de abrir livremente as fronteiras sem critérios e sem supervisão. Certamente, esse é um dos grandes desafios do terceiro milênio: superar o medo e buscar soluções humanas e racionais para o problema da violência, quer seja urbana originada por fatores socioeconômicos, quer seja a violência da guerra motivada por questões religiosas e geopolíticas.
“Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, esse foi o lema que inspirou não apenas a França, mas todo o ocidente, porém, quando paira o medo nos corações, quando os muros nos impedem de ver o outro, a fraternidade, essa última virtude declamada, é a primeira a ser esquecida. A fraternidade sem a qual a liberdade e a igualdade se tornam uma mentira. É a fraternidade que impede qualquer regime político de se tornar totalitário e desumano. É a fraternidade a virtude que mais nos faz humanos. Nas grandes calamidades o medo revela a grandeza e a pequenez do ser humano. Quantos por causa do medo deixam que o ódio tome conta dos seus corações? Quantos são aqueles que oferecem a face do amor e da fraternidade?(4)
O senso comum é cruel e terrível. Ele tende a simplificar as coisas de forma desumana, rotulando de forma taxativa toda uma nação, etnia ou religião, propondo abordagens radicais que parecem a solução de problemas como o terrorismo. O senso comum não é fraterno, o senso comum não é humano, ele é como um animal selvagem tomado por instintos que quando tem medo, ataca violentamente. Ele pode ser dócil se for bem iludido, aceitando as situações mais absurdas, mas vira uma fera brava se for fustigado. Age por simpatia ou antipatia, quase nunca age racionalmente.
Sempre que escuto alguma opinião sobre como resolver o problema dos refugiados de guerra ou do terrorismo e essa sugestão contém a palavra “todos”, sugerindo o que devemos fazer com “todos os muçulmanos”, com “todos os refugiados”, com “todos…”, então eu sei que estou diante de uma opinião baseada no senso comum e por isso mesmo infundada, preconceituosa e influenciada pelo medo.
Sempre que convido as pessoas a buscarem soluções mais complexas do que o simples isolamento e fechamento das fronteiras, escuto as vozes da ignorância que bradam - Por que você não leva um terrorista para sua casa? Como se eu estivesse sugerindo simplesmente abrir as fronteiras sem nenhum controle ou critério. Mas esses críticos sabem disso, eles apenas tentam empurrar qualquer opinião ponderada para o extremo oposto, assim a sua própria opinião parecerá mais razoável. Querem a solução aparentemente mais simples e radical, pensam que devem cortar o mal pela raiz, mas não enxergam que o risco que corre a árvore também corre o machado que a corta.
E se por um lado eu reconheça que é mais difícil receber e ajudar aqueles que têm cultura, religião ou concepção de mundo diferente, ou até mesmo oposta à nossa, o mesmo não se pode dizer de crianças inocentes que padecem em zonas de guerra ou porque seus familiares em uma tentativa desesperada de sobrevivência, fogem por terra ou pelo mar em busca de esperança, em busca do simples e fundamental direito à vida.
Crianças sírias em zona de guerra
A mim me causa muita estranheza, especialmente, quando aqueles que se dizem cristãos alimentam a indiferença ou o ódio. Essa é certamente uma atitude incoerente com a ética e a proposta cristã. Não entendo como alguns grupos religiosos autoproclamados cristãos conservadores conseguem conciliar um discurso de sectarismo, ódio e divisão com a proposta de Jesus Cristo. A palavra para isso é bizarro. Esquecem-se que o cristianismo é uma doutrina de origem oriental, baseada nos ensinamentos de alguém que foi uma criança pobre assim como as crianças sírias vítimas da guerra.
Não foi também Jesus quem exaltou as crianças e disse que o reino dos céus é para aqueles que se assemelham a elas? Não disse para oferecermos a outra face significando que não devemos revidar o mal com o mal? Não foi ele quem mandou que Pedro embainhasse a sua espada porque quem usa da espada por ela perecerá? Que também disse, amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem e vos caluniam? Que nos ensinou que Deus quer a morte do pecado, mas não do pecador? Que nos legou a sua paz e disse que o amor e o perdão resumem os princípios fundamentais de seus ensinamentos?(6)
Essas afirmações que parecem ingênuas e pueris e até absurdas diante da ameaça do terror, guardam na verdade um ensinamento muito profundo que apenas aqueles que meditarem seriamente sobre o assunto conseguirão enxergar. Se essa mensagem fosse apenas um conjunto de afirmações vazias ditas por um fanático religioso qualquer, ela não teria sobrevivido por mais de dois mil anos. Mensagem tão profunda que nem mesmo a maioria dos cristãos entendeu o seu conteúdo. Gandhi leu e entendeu, ele só não entendeu porque os cristãos agem como se acreditassem no contrário(7).
O que podemos fazer diante do terror? Acredito que a maior contribuição que podemos oferecer é fazer as pessoas saírem da faixa das opiniões formadas pelo senso comum, opiniões que, como afirmei acima, usam a palavra “todos”, simplificando o problema e propondo uma única solução radical. Devemos lutar contra o medo às vezes disfarçado de argumentos aparentemente razoáveis, mas que não têm consistência. É apenas por esse motivo que escrevo este texto, para influenciar o meu pequeno ciclo de amizades e assim saber que não estou de braços cruzados, que me importo, que choro quando vejo crianças vítimas da guerra porque vejo Jesus em cada uma delas, porque não quero ser uma pessoa que não se importa, não quero me desconectar do outro e de minha humanidade.
Essa atitude pode influenciar pessoas, formando uma massa crítica que por sua vez influenciará as políticas públicas de acolhimento aos refugiados. Não podemos permitir que as vozes do medo falem mais alto que a voz do amor. Por último, quero enaltecer a ação de entidades internacionais como a Cruz Vermelha(8), os Médicos Sem Fronteiras(9), Igrejas e Organizações Não Governamentais. E sobre o socorro às crianças, destaca-se especialmente o trabalho do UNICEF(10), que torna possível ajudarmos as crianças vítimas da guerra mesmo estando no conforto de nossos lares. Nosso ativismo é importante, mas a ajuda humanitária é urgente. Crianças em zonas de guerra sofrem frio e fome, estão órfãs e desabrigadas, doentes e em estado de choque. Elas necessitam do básico como água potável, alimentos e remédios para sobreviver. E você já se tornou colaborador de alguma delas?
Natal de 2016
Referências:
1 - O caso da Garota Síria Bana Alabed que relatou os horrores da guerra nas redes sociais: https://twitter.com/alabedbana .
Veja também a reportagem sobre Alan Kurdi, o menino sírio morto em uma praia na Turquia após o naufrágio de uma embarcação de refugiados: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/09/150903_aylan_historia_canada_fd .
2 - Estudo que apresenta o perfil social dos ocidentais que se tornam jihadistas: https://www.brookings.edu/wp-content/uploads/2016/06/isis_twitter_census_berger_morgan.pdf . Além de outros reportagens que explicam de maneira sumária alguns dos possíveis motivos que levam jovens ocidentais a se tornarem jihadistas:
http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/11/o-estado-islamico-cresce-e-atrai-jovens.html
3 - Da Síria para a Suécia, com amor: https://anistia.org.br/da-siria-para-suecia-com-amor .
4 - Famílias islandesas abrem suas casas para os refugiados: https://noticias.terra.com.br/mundo/o-outro-lado-da-crise-migratoria-islandeses-abrem-suas-casas-aos-refugiados,f872ecfd9da5f43a876dcc709dee9990wdgpRCRD.html .
5 - Reportagem sobre a história da fotografia: http://noticias.uol.com.br/album/2015/09/04/conheca-historias-de-refugiados-sirios.htm .
6 - Matheus 19:14; Lucas 6:29; Matheus 26:52; Matheus 5:44; Ezequiel 18:23; João 14:27; Matheus 22:37 e 18:21.
7 - Sobre Gandhi e o cristianismo: http://olharcristao.blogspot.com.br/2012/02/gandhi-e-impressao-cristianismo.html .
8 - http://www.redcross.org .
9 - http://www.msf.org .
10 - https://www.unicef.org .