Veronica Smink
Da BBC News Mundo na Argentina
Tudo começou com um crime horrendo: um menino de 12 anos voltava da escola em um bairro pobre na cidade de Comodoro Rivadavia, no sul da Argentina, quando foi atacado por um homem com uma faca. O garoto foi então levado para um terreno e, em seguida, foi estuprado.
Horas mais tarde, um grupo de 50 moradores da cidade foi até a casa do suposto agressor, um jovem de 21 anos, mas não o encontraram. O pai do então suspeito, um homem de 48 anos, acabou sendo espancado pela multidão e, depois, jogado em uma fogueira. O homem ainda tentou fugir, mas acabou morrendo.
O grupo de moradores se reuniu depois que mensagens nas redes sociais e grupos de Whatsapp identificaram o rapaz de 21 anos como autor do estupro. O jovem conseguiu se esconder, pois foi alertado que uma pequena multidão se dirigia até sua casa para se vingar pelo crime.
No entanto, a multidão não sabia que a vítima do estupro - o garoto de 12 anos - havia negado que o jovem era o autor do estupro.
Os episódios ocorreram na segunda-feira e, nesta sexta-feira, a polícia afirmou que quatro pessoas foram detidas - três homens e uma mulher.
A polícia argentina ainda não identificou quem seria o autor do estupro.
Dois policiais estavam presente durante o linchamento do pai do jovem, mas, segundo o chefe da polícia local, os agentes “nada puderam fazer para impedir a fúria da multidão.”
Informação distorcida
“A informação de quem era o estuprador da criança começou a circular de maneira distorcida”, disse Martín Cárcamo, promotor criminal, ao site de notícias Infobae.
Segundo o promotor, moradores do bairro Fracción 14 receberam a informação de que o estuprador era um jovem de 21 anos, vizinho da região onde ocorreu o crime, e que já havia brigado várias vezes com pessoas do local.
A multidão acreditava que o autor do crime tinha antecedentes criminais por delitos sexuais, mas, segundo o promotor, o jovem apontado como estuprador não tinha nada do tipo em seus registros.
Segundo o promotor Martín Cárcamo, o rapaz precisou ser escoltado pela polícia e depois levado à delegacia para evitar que também fosse atacado pela multidão.
A polícia também negou que ele tivesse participação no estupro. “Confirmamos que, no momento do abuso contra a criança, o jovem estava trabalhando”, disse Federico Massoni, ministro do governo da província de Chubut, na Patagônia.
‘Uma loucura total’
“O que aconteceu foi uma loucura total, produto do uso irresponsável das redes sociais, que apontou uma pessoa de maneira equivocada”, diz Massoni.
O subchefe da polícia de Chubut, Néstor Gómez Ocampo, deu detalhes da crueldade com que a multidão agiu. Segundo ele, as pessoas conseguiram retirar o pai do jovem das mãos da polícia - os policiais teriam impedido que o homem fosse atropelado.
Ocampo disse que um dos agressores “tentou amarrar o homem com uma corda para arrastá-lo pela rua”, mas a polícia o impediu.
O Ministério Público de Comodoro Rivadavia ressaltou que o linchamento “dificultou” as investigações do estupro da criança, podendo inclusive ter eliminado evidências.
Enquanto isso, as autoridades de Chubut informaram que iniciaram uma investigação “para determinar a responsabilidade da polícia” no incidente.
Preocupação
Nesta sexta-feira, o jornal argentino Clarín informou que uma juíza de Comodoro Rivadavia decidiu suspender as saídas temporárias de uma pessoa condenada por estupro que tinha permissão para sair da prisão para frequentar a universidade. Ela recebeu ameaças de linchamento.
A magistrada destacou que as mensagens que circularam nas redes sociais “pediam para matá-lo”.
Nos últimos anos houve na Argentina vários casos de linchamentos contra suspeitos detidos por moradores. Autoridades do país estão preocupadas que as redes sociais possam potencializar mais casos de “justiça com as próprias mãos”.
Notícia publicada na BBC Brasil , em 30 de março de 2019.
Glória Alves* comenta
O Ministro do Governo Federico Massoni, ao comentar o linchamento de um homem, pai de um jovem que foi falsamente acusado de estupro, disse que o que aconteceu em sua província foi uma loucura total, produto do uso irresponsável das redes sociais, que apontou uma pessoa de maneira equivocada.
Exatamente isso, uma loucura total, uma barbaridade o que assistimos em nosso mundo ainda. Aqui notamos, se é que podemos ou devemos enumerar, três crimes diante das leis humanas e das leis de Deus. O estupro, o uso irresponsável das redes sociais e a justiça com as próprias mãos.
Vale refletirmos… O que pensa o homem a respeito dele mesmo? Por que se acha no direito de fazer a “justiça” com as próprias mãos? Que tipo de prazer possui uma pessoa que levanta um falso testemunho, que denigre a imagem de outro usando as mídias sociais, ou qualquer outro meio?
Quantas notícias falsas, anúncios, e tantas outras situações são propagandeadas por pessoas desavisadas em nossas redes sociais que acabam sendo disseminadas por outras tantas, imprudentemente, sem ponderarem quanto às consequências dessas falsas notícias, ou mesmo em sendo verídicas, espalhadas como um rastilho de pólvora aceso dentro de um paiol coberto de munição.
Diante de uma mensagem recebida pelo WhatsApp, ou qualquer outro de comunicação social, repassada por um amigo, paramos para pensar, refletir, antes de enviarmos ou repassarmos essa mesma mensagem para outras pessoas antes de verificarmos a fonte, se é verdadeira ou falsa, se vale a pena retransmitir?
Sócrates, um dos maiores filósofos grego do século V, nos ensina que devemos antes de tudo, ao ouvirmos qualquer tipo de comentário - pois naquela época não havia nem telefone, as fofocas eram passadas de boca em boca -, passarmos o comentário pelo crivo das três peneiras:
A primeira peneira é a da VERDADE; a segunda é a da BONDADE e a terceira é a da UTILIDADE.
Não foi o que aconteceu em Comodoro Rivadavia, cidade mais populosa da província de Chubut, visto que um grupo de moradores se reuniu depois que mensagens nas redes sociais e grupos de WhatsApp identificaram um rapaz de 21 anos como autor de um estupro. “A informação de quem era o estuprador da criança começou a circular de maneira distorcida”, alguém deu início a acusação e os demais foram repassando sem se darem conta da gravidade do que estava por acontecer, influenciados por uma onda de ódio e violência tão grave quanto o ato sofrido pela criança. Outro crime foi cometido, um homicídio!
Temos aí a consequência da mentira, hoje modernamente chamada de “fake news”, circulando pela Internet, com suas notícias falaciosas causando transtornos, humilhando, difamando ou obtendo algumas vantagens comerciais. É o falso testemunho, isto é, que “refere-se sobretudo à ação de mentir, de caluniar, de dizer inverdades sobre alguém, buscando prejudicar essa pessoa”.(1)
E então, surge a pergunta: E se fosse verdade, e se esse rapaz citado nas redes sociais fosse realmente o culpado, justificaria a insânia da população local? As autoridades argentinas estão preocupadas, não sem razão, pois as “fake news” podem aumentar o número de casos da chamada “justiça com as próprias mãos”.
Hoje recebi de uma pessoa conhecida, repassada por um parente dela, que determinado ator havia falecido. Pelo nome do ator, busquei na Internet e verifiquei que ele desencarnara há cerca de seis anos. A pessoa ficou sem graça. Esse é um dos inúmeros exemplos que vem acontecendo diariamente em nossas redes sociais. Golpes são planejados por mentes maliciosas e pessoas imprudentes caem muitas vezes por não se darem conta da armadilha diante de si.
A quem devemos responsabilizar por todos os males e aflições decorrentes da nossa imprudência, das ações irresponsáveis, se não a nós mesmos? A Veneranda Joanna de Ângelis, através da psicografia de Divaldo Franco, assevera que “a mentira dever ser rechaçada sob qualquer forma em que se apresente, em face dos prejuízos morais que provoca”(2), e o Espirito da Verdade, em o “Evangelho segundo o Espiritismo”, nos conclama a extirparmos de nossas “almas doloridas a impiedade, a mentira, o erro, a incredulidade. São monstros que sugam o nosso mais puro sangue e que nos abrem chagas quase sempre mortais”.(3)
Seja qual for a situação que venhamos passar, jamais devemos desejar ou participar de atos em que venhamos a nos tornar criminosos diante das leis divinas, e nos arrependermos amargamente depois. A justiça humana pelas próprias mãos é uma violência, é uma crueldade. Segundo os Benfeitores da Humanidade “é o instinto de destruição no que tem de pior, porquanto, se, algumas vezes, a destruição constitui uma necessidade para que haja uma transformação com o fim de renovação e melhoria dos seres vivos, com a crueldade jamais se dá o mesmo. Ela resulta sempre de uma natureza má”.(4)
Um grupo de 50 pessoas atormentadas tomam para si o cognome de justiceiros e retiram de sua casa um homem e o assassinam brutalmente. Segundo a polícia, o jovem apontado como estuprador não tinha nenhum tipo de antecedentes de delitos sexuais em seus registros, o pai muito menos.
Mais uma vez a história se repete em nossa Terra, e ainda ouviremos tais relatos, pois no coração da Humanidade terrestre ainda não reina a Justiça Divina. Ensinam-nos os Espíritos Superiores que o caráter do homem que pratica a justiça em toda a sua pureza, a exemplo de Jesus, é aquele que pratica o amor ao próximo e a caridade, sem os quais não há verdadeira justiça.
“Ninguém tem o direito de atentar contra vida de seu semelhante, nem de fazer o que quer que possa comprometer a sua existência corporal”, seja quem for. Deus é quem aplica a vera justiça, sentimos isso em todas as coisas e em todos os instantes, pois somos punidos sempre naquilo em que pecamos, nesta ou em outra vida. Na questão 764, da Lei de Destruição(5), os Espíritos Superiores respondendo a Allan Kardec sobre a justiça divina afirmam que “aquele que foi causa do sofrimento para seus semelhantes virá a achar-se numa condição em que sofrerá o que tenha feito sofrer”. Anotado está no Evangelho de Mateus, capítulo 16, versículo 27, que “a cada um será dado segundo as suas obras”. O Mestre deixa bem claro que de conformidade com as nossas ações receberemos o que merecermos.
E muitos de nós temos o mau hábito de julgarmos, segundo o nosso ponto de vista mesquinho, as tragédias noticiadas, mas não conhecemos a história espiritual de ninguém, não conhecemos nem a nossa; dessa forma, devemos cuidar para não afirmarmos e não concluirmos sentença condenatória a quem quer que seja, nesse ou em outro caso.
A Doutrina Espírita é clara, pois não contém alegorias e nem figuras que possam dar falsas interpretações aos seus princípios. Sabemos que pela misericórdia infinita do Pai recebemos oportunidades, através das reencarnações, de repararmos nossas infrações em relação às Suas Leis. Dessa forma, “todos aqueles, que são vítimas dessas condutas desvairadas, recuperam-se de erros não menos graves que cometeram anteriormente, edificando-se e reparando-os agora, a fim de ascenderem pela escada do progresso moral e espiritual às cumeadas da felicidade”.(6)
Temos o livre-arbítrio dos nossos atos e somos responsáveis por todas as suas consequências, portanto, o homem que possui o prazer mórbido de levantar um falso testemunho, de mentir, de denegrir a imagem de seu semelhante, de destruir sua vida, usando de quaisquer meios, sejam as mídias sociais ou a própria boca, e de fazer a “justiça com as próprias mãos”, deve saber que acima dele reina a Imutável Verdade, a Imutável Justiça, Deus!
Ele não necessita desses flageladores porque dispõe de mecanismos próprios, Suas Leis. No entanto, o primitivismo de muitos Espíritos, por vontade pessoal, tornam-se instrumentos da Justiça impondo a reparação, porém tombando nos mesmos abismos… “Compaixão, desculpa e perdão, portanto, constituem a trilogia terapêutica a que se devem entregar aqueles que sofrem as situações dolorosas referidas.”(7)
Somos Espíritos imperfeitos, isto é, edificando a nossa pureza espiritual, a caminho da luz, conforme o objetivo do Eterno Deus ao nos criar. Temos em nossas mãos a argila que devemos usar para erguer o Reino Divino em nossos corações. Lembra-nos Teresa D’ávila, Espírito, que “o mundo é cerâmica sublime, em pleno cosmos. A carne é o barro; o espírito é o oleiro. Cada homem plasma seu destino de acordo com a própria vontade”.(8)
Concluímos nosso comentário aprendendo a pensar e agir como Sócrates antes de comentarmos ou repassarmos qualquer coisa, de quem quer que seja:
“Pensaste bem se é útil o que vieste falar a respeito do meu amigo? Então, disse-lhe o sábio, se o que queres contar-me não é verdadeiro, nem bom, nem útil, então é melhor que o guardes apenas para ti.”(9)
Bibliografia:
(1) <https://www.dicio.com.br/falso-testemunho/ >;
(2) “Vida: Desafios e Soluções” - Cap. 3 - Fatores de insegurança - Necessidade da mentira;
(3) O Evangelho Segundo o Espiritismo - Allan Kardec - Cap. VI - O Cristo Consolador - item 7;
(4) “O Livro dos Espíritos” - Allan Kardec - Q. 728 - 752;
(5) “O Livro dos Espíritos” - Allan Kardec - Q.764;
(6) “Atitudes Renovadas” - Cap. 17 - Compaixão Sempre;
(7) “Atitudes Renovadas” - Cap. 17 - Compaixão Sempre;
(8) “Falando à Terra” - Francisco Cândido Xavier - Espíritos Diversos;
(9) Parábola - As três Peneiras - <https://www.youtube.com/watch?v=GGZ62zWxOZU >.