Entre os cristãos, como já havia destacado Kardec, 1 os entendimentos históricos sobre Jesus, a compreensão da realidade espiritual e mesmo as expectativas sobre o futuro são bem variados. Ainda que com muitos pontos doutrinários em comum, principalmente no que se refere à moral cristã, católicos, evangélicos e espíritas divergem em algumas questões. Contudo, essa diversidade de cristianismos observada nos dias de hoje não é uma novidade dos tempos modernos.
O objetivo desse texto é destacar, apenas a partir de um conceito bem específico, como alguns pensadores cristãos da Antiguidade pensavam de forma diferente, ora aproximando-se, ora afastando-se das futuras conclusões espíritas. Como bem aponta Léon Denis, nos três primeiros séculos houve um afastamento gradual das formas primitivas do cristianismo.2 Contudo, entendemos que não houve, entre as primeiras comunidades cristãs, um cristianismo unificado “espírita”, nem um catolicismo institucionalizado que excluísse radicalmente os preceitos espíritas. O que observamos é uma pluralidade de cristianismos, aos poucos podada por questões políticas e escolhas filosóficas,3 condições sociais e culturais,4 dentre outros aspectos. Essa conclusão é favorável tanto a uma posição mais tolerante à diversidade religiosa, quanto ao entendimento de que conceitos espíritas permeavam a tradição cristã em sua infância em meio há pensamentos já discordantes.
Como têm apontado estudiosos do assunto, “boas razões depõem em favor de um começo plural da história do cristianismo primitivo”,5 sejam conflitos de cunho teológico e eclesiástico observáveis nos próprios textos cristãos (At 15:1ss; Gl 2:1ss); sejam as próprias diferenças culturais, por exemplo, entre as comunidades gentílicas paulinas e as judaicas sírio-palestinas; seja o próprio estabelecimento do cânone do Novo Testamento, que reúne quatro evangelhos nem sempre concordantes (por que não apenas um?); seja a própria existência de outros evangelhos, atos e cartas não incluídos nesse cânone, e que retratam tradições diferentes,6 como também observou Denis.7
Essa diversidade, mesmo que caminhando para uma aproximada unificação institucional séculos depois, pode ser também notada nos textos cristãos do século II. Nesse momento começa um importante período da história do cristianismo, a Patrística, que reúne um “conjunto de escritos primitivos da era cristã, registrando suas experiências, seus ensinamentos, seus rituais e a vida eclesial”8 . Seus autores são os chamados Padres da Igreja ou Santos Padres, muitos deles teólogos, místicos, líderes ou mesmo leigos, alguns martirizados por serem cristãos. Encerrando-se em torno dos séculos VII e VIII, o período patrístico tem entre seus mais importantes nomes Agostinho de Hipona, Irineu de Lyon e Eusébio de Cesareia.
Esse conjunto de textos recebeu algumas menções de Kardec 9 e mais atenção de Léon Denis,10 contudo, guarda ainda uma enorme riqueza a ser explorada pelo Movimento Espírita, naturalmente em diálogo com os preceitos do Espiritismo. Nesse texto, nossa atenção se volta ao período inicial da Patrística, particularmente à Apologética, que reúne textos que têm por objetivo central a defesa ou apologia da comunidade cristã ante os opositores, bem como criticar suas convicções.11
O maior expoente desse conjunto é Justino de Roma, também conhecido como Justino, o mártir. Embora nascido na Samaria, em torno do ano 100, não é de origem judaica. Após conhecer várias escolas filosóficas e não se satisfazer com elas, provavelmente se converteu ao cristianismo no ano 132, exercendo a maior para de sua atividade cristã em Roma até ser decapitado no ano 165, segundo a tradição.12 Pelo tipo de reflexões que desenvolveu, é considerado o primeiro “filósofo cristão”, e em sua obra encontramos uma síntese ainda incipiente entre a cultura grega e o cristianismo, mas original e influente sobre o pensamento seguinte.13
Sua I Apologia foi escrita em torno do ano 155, com o objetivo de rebater críticas e calúnias contra os cristãos e justificar sua religião perante o imperador romano. O trecho que destacamos já foi parcialmente citado por Denis, justamente por tratar da manifestação dos mortos,14 mas destacamos aqui um outro detalhe:
Se a morte terminasse na inconsciência, seria uma boa sorte para todos os malvados. Admitindo, porém, que a consciência permanece em todos os nascidos, não sejais negligentes em convencer-vos e crer que essas coisas são verdade. De fato, a necromancia, o exame das entranhas de crianças inocentes, as evocações das almas humanas e os que são chamados entre os magos de espíritos dos sonhos e espíritos assistentes, os fenômenos que acontecem sob a ação dos que sabem essas coisas devem persuadir-vos de que, mesmo depois da morte, as almas conservam a consciência. Do mesmo modo, poderíamos citar os que são arrebatados e agitados pelas almas dos mortos, aos quais todos chamam de possessos ou loucos (...) [grifo nosso] (I Apologia, 18:1-4) 15
Na parte que grifamos, indubitavelmente aos moldes espíritas, Justino associa a “possessão” e a “loucura” à influência das “almas dos mortos”, que conservam sua consciência após a morte. Mesmo admitindo a existência de demônios, não atribuía a eles, nesse momento, essa ação específica.
Justino também acreditava em intervenções semelhantes por parte dos demônios, em verdade, nos mais diversos aspectos da vida. Identificados com os deuses pagãos e o diabo da tradição judaica,16 seriam responsáveis por desviar o pensamento das pessoas, por tentar se apoderar delas, por propor entendimentos religiosos equivocados, por espalhar “muitas calúnias ímpias, tomando como aliada a paixão que habita em cada um”17 . Ainda que não saibamos ao certo a relação entre “demônios” e “almas dos mortos” para Justino, parece-nos que esses últimos, quando maus, poderiam trabalhar em conjunto com os primeiros, talvez nesse processo de influenciação. Reforça essa possibilidade o trecho condenatório: “Ele [o príncipe dos demônios] e todo o seu exército, juntamente com os homens que o seguem, será enviado ao fogo para ser castigado pela eternidade sem fim, coisa que foi de antemão anunciada por Cristo” [grifos nossos].18
De qualquer forma, também segundo “O Livro dos Espíritos”, os Espíritos podem influenciar nossos pensamentos e atos ao ponto de, muitas vezes, dirigi-los. Naturalmente, se se tratam de desencarnados mal-intencionados ou “malvados”, essa interferência é negativa. Quando essa influência se torna persistente, surge o processo obsessivo, que pode apresentar “características muitos diferentes, que vão desde a simples influência moral, sem sinais exteriores perceptíveis, até a perturbação completa do organismo e das faculdades mentais”.19 Logo, pode estar na causa da “loucura”.
Contudo, na mesma época vamos encontrar um pensamento oposto. Taciano, o Sírio, nasceu em torno do ano 120, também oriundo de família pagã. Provavelmente se converteu ao cristianismo em Roma por volta do ano 152, alegando motivos semelhantes aos de Justino, sendo, em verdade, seu discípulo.20 Mesmo apresentando um pensamento próximo ao de seu mestre em vários pontos,21 após sua morte passou a adotar uma rejeição radical à matéria, mesmo ao matrimônio e ao uso de vinho no cerimonial cristão.22
Destacou-se pela obra Diatéssaron, uma tentativa de fusão dos quatro evangelhos para formar um único, texto que foi adotado nas igrejas do Oriente até o século V. Além dessa e de outras obras, publicou o Discurso contra os gregos, em torno do ano 170, “um ataque impiedoso contra a cultura e filosofia gregas” e “um esforço por mostrar a superioridade do cristianismo”.23 Nesse texto vamos encontrar a questão de nosso interesse:
Os demônios que dominam os homens não são as almas dos mortos. Com efeito, como podem ser capazes de agir depois de mortos? A não ser que creiamos que, enquanto vive, um homem é ignorante e impotente e, depois que morre, recebe daí para a frente um poder mais eficaz. Isso, porém, não é assim, como já demonstramos em outro lugar, nem é fácil compreender como a alma imortal, impedida pelos membros do corpo, se torne mais inteligente quando se separa dele. Não. São os demônios aqueles que, por sua maldade, se enfurecem contra os homens e, com variadas e enganosas representações, desviam os pensamentos dos homens, já por si inclinados para baixo, a fim de torná-los incapazes de empreender a sua marcha de ascensão para os céus. (...) Quem, portanto, quiser vencê-los, rejeite a matéria, pois, armado com a couraça do espírito celeste, será capaz de salvar tudo o que por ela foi recoberto. Existem também doenças e rebeliões em nossa própria matéria, e os demônios, quando nos sobrevém a dor, atribuem a si mesmos as causas delas. Há também vezes em que eles próprios, por causa da tempestade da sua própria maldade, agitam o estado do nosso corpo, mas, feridos pela palavra do poder de Deus, saem temerosos, e o doente fica curado. [Grifos nossos] (Discurso contra os gregos, 16). 24
Discordando explicitamente de seu mestre, Taciano afirma que “os demônios que dominam os homens não são as almas dos mortos”. Seu argumento é interessante: para agir como os demônios, as almas deveriam desenvolver um “poder” que não possuíam enquanto encarnadas, até mesmo se tornar mais “inteligentes”, o que não seria possível. Logo, apenas seres estabelecidos já com essa competência poderiam importunar os homens. Para ele, esses seres seriam os “anjos caídos” dos tempos primordiais.25
Importante é lembrar que este é, ainda hoje, o pensamento majoritário entre os cristãos. Ao lado da admissão de doenças psíquicas como possível causa dos transtornos mentais, como também aponta Taciano acima, a crença na “influência demoníaca” e em seus malefícios mentais e físicos faz parte da doutrina católica, por exemplo.26 Não faz parte, porém, sua associação com as “almas dos mortos”.
Todavia, Taciano destaca pontos com os quais concordamos. A ação obsessiva tem sucesso naqueles “já inclinados para baixo”, como também apontamos em Justino acima: permitir o nascimento e o fortalecimento dessa ação perniciosa é de responsabilidade do encarnado.27 Ademais, para vencê-los é necessário que se “rejeite a matéria”, a fim de “empreender a sua marcha de ascensão para os céus”. Também segundo o Espiritismo, o apego aos bens terrenos é um “obstáculo à salvação”, imperfeição que nos torna passíveis das “influências dos Espíritos imperfeitos”.28
Em verdade, a crença nos demônios tem sua razão de existir. Em vários trechos do Novo Testamento sua ação é atestada, sem que haja qualquer associação às almas dos mortos (Mc 1:21 a 27, 9:14 a 28; Mt 9:32 a 34, 12:22 a 28 etc.). Contudo, ao mesmo tempo, não há nada que negue essa relação. Nessa direção, Kardec apresenta argumentos em favor de uma associação exclusiva entre os demônios e os Espíritos mal-intencionados.29 Como bem resume,
Segundo a doutrina da Igreja os demônios foram criados bons e se tornaram maus por sua desobediência: são anjos decaídos, colocados primitivamente por Deus no topo da escala, de onde caíram. Segundo o Espiritismo os demônios são Espíritos imperfeitos, mas que se melhoram; ainda estão na base da escala, mas subirão um dia. 30
Por essa compreensão, que nada empobrece os relatos bíblicos ou nega sua autenticidade, até mesmo os ditos “demônios” são merecedores da Misericórdia Divina, estão submetidos ao processo evolutivo, como todas as criaturas divinas.
Concluindo e resumindo, podemos observar nos dois textos analisados uma divergência de opinião entre duas referências cristãs de uma mesma época e aparentemente vinculadas a uma mesma comunidade cristã. Isso é indício de uma discussão em curso, não necessariamente de uma tentativa de distorção das ideias cristãs originais. Em verdade, no que se refere ao aspecto analisado, não conhecemos com profundidade as interpretações dos primeiros cristãos a partir de suas experiências ao lado de Jesus e dos apóstolos.
Chamamos a atenção, todavia, para a existência bem explícita dessa associação entre “demônios” e “almas” por um cristão já no século II, talvez a mais antiga registrada. Bem antes das interpretações espíritas modernas dos textos bíblicos, alguém que filosofava sobre sua religião, a partir de sua cultura greco-romana e das tradições judaico-cristãs, já pensava nessa direção. Naturalmente, não podemos deduzir daí que a associação feita por Justino foi compartilhada por um grupo considerável. Interessante seria investigar o aparecimento de conclusões semelhantes entre os padres seguintes. Pela continuidade da tradição, porém, podemos concluir apenas que a posição de Taciano prevalece até os dias de hoje: as almas dos mortos não poderiam ser responsáveis pelo que chamamos de obsessão.
Por fim, reforçamos novamente o reconhecimento de certa diversidade já entre as primeiras comunidades cristãs. Afinal, observando as ações extraordinárias e ouvindo as palavras de Jesus, tentavam entendê-las a partir das próprias concepções religiosas e filosóficas. Não sabemos até que ponto, ou em que profundidade, elaborações semelhantes à espírita frutificaram entre os antigos cristãos, afinal, como reconhece Kardec, os discípulos eram ignorantes sobre muitos pontos.31 A partir dessas conclusões, somos convidados a uma postura mais compreensiva perante as demais tradições cristãs, do passado e do presente, em sua busca de entender e vivenciar a proposta de Jesus.
Isso não significa, contudo, relativizar a posição espírita. Escolhemos a interpretação espírita por ser ela, aos nossos olhos, a que explica de forma mais racional e completa as mais variadas questões que desafiam a humanidade. No caso em questão, mais coerente para nós é a associação do processo obsessivo à influência de Espíritos como nós, ainda que com más intenções, mas que, em tempo determinado, amadurecerão na direção da vivência das leis divinas.
KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de janeiro: FEB, 2010, introdução, I. ↩︎
DENIS, Léon. Cristianismo e Espiritismo. Rio de janeiro: FEB, 2008, c. 1, p. 29. ↩︎
Idem, c. 6, p. 87. ↩︎
NOGUEIRA, Paulo A. Souza. Narrativa e cultura popular no cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, 2018, p. 60 e 61. ↩︎
THEISSEN, Gerd. A religião dos primeiros cristãos: uma teoria do cristianismo primitivo. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 350ss. ↩︎
NOGUEIRA, Paulo A. Souza. Narrativa e cultura popular no cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, 2018, p. 28. ↩︎
DENIS, Léon. Cristianismo e Espiritismo. Rio de janeiro: FEB, 2008, c. 1, p. 29. ↩︎
BOGAZ, Antônio S; et al. Patrística: caminhos da tradição cristã. 2. ed., São Paulo: Paulus, 2008, p. 25 e 26. ↩︎
KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos, ano III: 1860. 2ª ed., Catanduva: EDICEL, 2017, p. 335 [outubro]; KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. Rio de janeiro: FEB, 2009, “Terceiro diálogo - O padre”, p. 125. ↩︎
DENIS, Léon. Cristianismo e Espiritismo. Rio de janeiro: FEB, 2008, c. 4, 5, entre outros. ↩︎
MORESCHINI, Claudio. História da filosofia patrística. 2. ed., São Paulo: Edições Loyola, 2013, p. 70. ↩︎
JUSTINO DE ROMA: I e II Apologias/Diálogo com Trifão. São Paulo: Paulus, 1995, p. 9 e 10. ↩︎
MORESCHINI, Claudio. História da filosofia patrística. 2. ed., São Paulo: Edições Loyola, 2013, p. 83. ↩︎
DENIS, Léon. Cristianismo e Espiritismo. Rio de janeiro: FEB, 2008, n. 8, p. 390 (importante notar que a tradução usada por Denis tem diferenças significativas da que usamos.) ↩︎
JUSTINO DE ROMA: I e II Apologias/Diálogo com Trifão. São Paulo: Paulus, 1995, p. 35. ↩︎
Idem, p. 22 e 44. ↩︎
Idem, p. 26, 27, 29, 42 etc. ↩︎
Idem, p. 44. ↩︎
KARDEC, Allan. A Gênese. Rio de janeiro: FEB, 2009, c. 14, i. 45. ↩︎
PADRES APOLOGISTAS. São Paulo: Paulus, 1995, p. 57; BOGAZ, Antônio S; et al. Patrística: caminhos da tradição cristã. 2. ed., São Paulo: Paulus, 2008, p. 77. ↩︎
MORESCHINI, Claudio. História da filosofia patrística. 2. ed., São Paulo: Edições Loyola, 2013, p. 84. ↩︎
PADRES APOLOGISTAS. São Paulo: Paulus, 1995, p. 58. ↩︎
Idem, p. 61. ↩︎
Idem, p. 82. ↩︎
Idem, p. 72. ↩︎
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 2000, §395 e 1673. ↩︎
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 2. ed., Rio de janeiro: FEB, 2010, q. 459 a 480. ↩︎
KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de janeiro: FEB, 2009, c. 16, i. 7 e c. 28, i. 82. ↩︎
KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Rio de janeiro: FEB, 2010, 1. p., c. 9. ↩︎
Idem, 1. p., c. 9, i. 21. ↩︎
KARDEC, Allan. A Gênese. 1. ed., Rio de Janeiro: FEB, 2009, c. 15, i. 61. ↩︎