Christine Ro
BBC Future
Costumamos dizer que a comida aproxima as pessoas mas também pode dividir famílias.
A autora de livros de receitas Nandita Godbole viveu isso na pele. Sua abastada família indiana, que costumava contratar cozinheiros para trabalhar em suas casas, desaprovou a profissão que ela escolheu.
Quando seu livro mais recente, Ten Thousand Tongues: Secrets of a Layered Kitche n (Dez Mil Línguas: Os Segredos de uma Cozinha Complexa , em tradução livre), mergulhou a fundo na história da família, ela enfrentou ainda mais resistência.
Obviamente, não tratava apenas de comida. Mudando receitas tradicionais - e explorando partes da história de sua família sobre as quais os outros tinham senso de propriedade - ela foi vista como alguém que desafiava a hierarquia familiar. E alguns parentes pararam de falar com ela.
A história de Godbole está longe de ser incomum. O distanciamento familiar tem sido definido como o afastamento e a perda de afeto que ocorrem ao longo de anos ou mesmo décadas em uma família. Não está claro se isso está aumentando nos dias de hoje, já que é um campo de pesquisa relativamente novo.
Uma pesquisa da Stand Alone, instituição de caridade do Reino Unido que apoia pessoas afastadas de familiares, aponta que isso afeta pelo menos 1 em cada 5 famílias britânicas.
Nos EUA, um estudo da Universidade Purdue com mais de 2.000 pares de mães e filhos descobriu que 10% das mães se distanciaram de pelo menos um filho adulto.
Em outra pesquisa americana, esta da Universidade Kean, descobriu que mais de 40% dos participantes se distanciaram de um familiar em algum momento e apontou que, em grupos como o de estudantes universitários, isso pode ser quase tão comum quanto o divórcio.
Becca Bland, fundadora do Stand Alone, perdeu o contato com os pais. Ela diz que o assunto é muito mais debatido hoje do que há cinco anos. Isso é confirmado por dados do Google que mostram um crescimento constante de pesquisas com termos relacionados ao distanciamento familiar, principalmente no Canadá, na Austrália e em Cingapura.
“Meghan Markle e a família real definitivamente levaram o tema da desavença familiar para as manchetes”, diz Bland.
A duquesa de Sussex, que foi em 2018 a pessoa mais pesquisada no Google no Reino Unido (e a segunda nos Estados Unidos), falou recentemente sobre sua difícil relação com o pai.
O ator Anthony Hopkins também reconheceu em uma entrevista no ano passado que ele mal conversou com sua filha em duas décadas.
Distanciamento familiar é mais comum em algumas sociedades
Embora exemplos de distanciamento familiar possam ser encontrados em todo o mundo, é algo mais comum em algumas sociedades.
Um fator de influência parece ser a existência ou não de um forte sistema público de assistência e apoio à população. Em países com programas de bem-estar social robustos, as pessoas simplesmente precisam menos de suas famílias e têm mais flexibilidade para manter ou não esses laços.
Na Europa, por exemplo, pais em idade avançada e filhos adultos tendem a interagir mais e a viver mais perto uns dos outros em países mais ao sul do continente, onde a assistência pública é mais limitada.
Fatores financeiros também se relacionam com outros aspectos, como educação e raça. Na Alemanha, níveis mais altos de instrução dos filhos estão associados a maiores taxas de conflito com os pais.
Megan Gilligan, gerontóloga da Universidade Estadual de Iowa, observa que, nos Estados Unidos, “as famílias de minorias raciais tendem mais a morar juntas e a ser mais dependentes das trocas que ocorrem no âmbito familiar”.
Em Uganda, o distanciamento familiar está em ascensão, diz Stephen Wandera, demógrafo da Universidade Makerere, em Kampala. As famílias ugandenses têm sido tradicionalmente grandes - o que se mostrou crucial nas últimas décadas, quando membros de uma família tiveram de cuidar de pessoas órfãs ou afetadas pela guerra civil ou pela Aids.
Mas em pesquisas recentes, Wandera e seus colegas identificaram que 9% dos ugandenses com 50 anos ou mais moram sozinhos - um índice surpreendentemente alto. Isso não é o mesmo que a alienação familiar, é claro. Mas Wandera diz que, à medida que as famílias se tornam menores e mais nucleares e que a urbanização aumenta, a prevalência do distanciamento provavelmente se intensificará.
Isso não vai acontecer imediatamente. “As normas culturais ainda são fortes e levam tempo para desaparecer”, diz ele. Mas Wandera espera mudanças dentro de 20 anos.
Mas não significa que governos devem limitar o apoio financeiro a pessoas idosas para incentivar famílias mais fortes.
A cultura familiar espanhola tem sido chamada de “mais coercitiva” do que, por exemplo, na Noruega, onde as relações intergeracionais são geralmente mais amigáveis, porque são uma opção e sofrem menos pressões financeiras.
Por que isso acontece?
O divórcio contribui para a perda de relacionamentos familiares, especialmente com os pais. Assim como manter segredos. O abandono de parentes com identidades marginalizadas também é um fator comum, como a rejeição familiar a minorias sexuais e de gênero no Vietnã, por exemplo.
Mas o distanciamento é muitas vezes algo silencioso e pouco dramático. Gilligan explica que é tipicamente gradual, em vez de um grande acontecimento. As pessoas que ela entrevistou costumam dizer que “não sabem bem como isso aconteceu” em vez de apontar para um incidente específico.
Ainda assim, mesmo que os gatilhos pareçam triviais, eles refletem uma tensão de longa duração. As famílias que buscam se reconciliar devem reconhecer que é improvável que conflitos sejam apenas incidentes isolados, por isso, pode ser importante lidar com os eventos do passado.
Para aqueles que buscam a reconciliação - ou para evitar o distanciamento desde o início -, evitar fazer julgamentos também pode ser útil. Em sua pesquisa com mães em idade mais avançada, 10% das quais se afastaram de um filho adulto, Gilligan descobriu que o fator mais relevante foi um descompasso de valores. Por exemplo, “se a mãe realmente valorizava as crenças e práticas religiosas e o filho as violava, a mãe realmente ficava ofendida”.
Estes fatores vão além da religião. Uma mãe que valorizava muito a honestidade cortou o relacionamento com um filho que mentiu, enquanto uma mãe que valorizava a autoconfiança parou de falar com uma filha que acreditava ser dependente de um homem.
As mães “descreveram coisas que elas simplesmente não conseguiam superar, que aconteceram e que tinham sido perturbadoras para elas”, diz Gilligan. “Isso continuava a ressurgir nos relacionamentos. Então, elas nunca superavam.”
E como no clássico filme japonês *Rashomon * ou na série The Affair , duas pessoas podem ter lembranças tão diferentes da mesma experiência que é quase como se não fosse a mesma experiência.
Filhos adultos no Reino Unido, por exemplo, na maioria das vezes mencionam o abuso emocional como a causa do distanciamento de seus pais.
Mas é muito menos provável que os pais mencionem o abuso emocional (que se refere a tentativas persistentes de controle por meio de humilhação, crítica ou qualquer outro tipo de comportamento negativo). Em vez disso, se referiram mais frequentemente a causas como o divórcio ou expectativas incompatíveis.
Como a pesquisa de Gilligan era focada em mães, ela não falou com os filhos. Então, é difícil saber se o mesmo se aplica a eles. Mas de qualquer forma, essa desconexão é comum.
“O filho adulto se distanciou e os pais não estão se comunicando sobre o que os incomoda, então, eles não conseguem chegar a um acordo”, diz ela. E, claro, se uma pessoa fica na defensiva ou não está disposta a ouvir, a dupla pode se falar sem se comunicar de verdade.
“Havia uma rigidez em relação à família na geração do pós-guerra” no Reino Unido, diz ela. As pessoas viam seus relacionamentos familiares em termos de conceitos como dever e autossacrifício, o que, às vezes, significava que as pessoas suportavam abuso físico ou emocional - ou não percebiam isso.
Entre irmãos, valores e expectativas incompatíveis também desempenham um papel. Mas o favoritismo dos pais é outro fator significativo.
As vantagens do distanciamento familiar
Poderia ser mais simples ver o distanciamento familiar como algo apenas negativo, mas a realidade é mais complexa. Assim como os tabus sobre divórcio podem manter mulheres presas a casamentos abusivos, uma crença na santidade das famílias pode manter as pessoas sofrendo desnecessariamente.
“Parte da literatura sobre o tema diz, na verdade, que a alienação é talvez a melhor maneira de lidar com esses tipos de relacionamentos”, diz Gilligan.
“Se [os relacionamentos] são conflitantes, se estão causando tanta angústia, talvez seja a maneira mais saudável de pais e filhos adultos lidarem com isso.”
As pessoas podem sentir que cortar relações tóxicas foi a escolha certa. O estudo da Stand Alone descobriu que, para mais de 80% das pessoas afetadas, contar o contato está associado a alguns resultados positivos, como liberdade e independência. Pode ser um passo crucial para se livrar de abusos.
Também é importante notar que o distanciamento nem sempre é permanente. As pessoas se afastam e se reaproximam.
Trang Nguyen, pesquisador de saúde pública da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, diz que, entre as famílias vietnamitas, onde há rejeição parental de mulheres LGBT ou homens trans, “geralmente os irmãos se mantêm mais próximos, e o apoio de um irmão ajuda muito”.
O distanciamento familiar é doloroso, em parte porque é uma perda ambígua, sem um desfecho ou encerramento. E também há o fato que muitas pessoas não entendem por que isso acontece com alguém.
Cortar o contato com um membro da família pode ser muito doloroso devido à forma como a sociedade não entende bem e atribui a isso um aspecto de vergonha ou reprovação.
Especialistas dizem que pessoas que já estão isoladas de suas famílias não devem se sentir ainda mais alienadas por causa de sua situação - seja algo derivado de uma situação sobre a qual tinham pouco controle ou de uma decisão que dificilmente foi tomada facilmente.
Do ponto de vista acadêmico, o estigma também dificulta saber exatamente quantas pessoas estão afastadas de suas famílias. É muito provável que seja algo subestimado em culturas em que é socialmente inaceitável discutir conflitos familiares.
A autora Godbole conhece bem esse estigma. “Eu já aceitei que pode demorar um pouco para as pessoas entenderem, e algumas nunca conseguirão. Estou em paz com isso”, diz ela.
Aparentemente, o distanciamento familiar nem sempre é algo que precisa ser “consertado”. Mas, como acontece com outras experiências dolorosas, a vergonha derivada desta situação pode.
Notícia publicada na BBC Brasil , em 26 de maio de 2019.
Jorge Hessen* comenta
Os Benfeitores espirituais esclarecem que de todos os institutos sociais existentes na Terra, a família é o mais importante, do ponto de vista dos alicerces morais que regem a vida. A família reaviva em nós as sensações de segurança e aconchego, tal a importância do grupo familiar como estrutura capaz de nos sustentar nas lutas da vida.
Atualmente o distanciamento familiar tem sido definido como a perda de afeto que ocorre ao longo de anos ou mesmo décadas em uma família. O divórcio contribui para a perda de relacionamentos familiares, especialmente com os pais. O abandono de parentes com identidades marginalizadas também é um fator comum, como a rejeição familiar a minorias sexuais e de gênero, por exemplo.
Também é importante notar que o distanciamento nem sempre é permanente. As pessoas se afastam e se reaproximam. Ademais, cortar o contato com um membro da família pode ser muito doloroso devido à forma como a sociedade não entende bem e atribui a isso um aspecto de vergonha ou reprovação.
Os laços de família são necessários à harmonia e evolução da sociedade. O resultado da negligência ou ruptura dos laços familiares leva a exacerbação do egoísmo. Existem duas espécies de vínculos familiares: os espirituais e corporais. As ligações corporais são frágeis e temporárias, entretanto os laços espirituais se fortalecem pela união e se vinculam na eternidade por meio das múltiplas migrações do Espírito.
É impossível auxiliar a composição social, quando ainda não conseguimos ser úteis nem mesmo com a família em que Deus nos colocou, a título precário. Portanto, antes da grande projeção pessoal na obra coletiva, aprendamos a colaborar, em favor dos familiares, no dia de hoje, convictos de que análogo empenho importa realização essencial.
A nossa família consanguínea pode ser contemplada como o cerne eficaz de nossas representações. Imagens aprazíveis ou desagradáveis que o pretérito nos restitui. Aprendamos antes de tudo a exercer piedade para com a própria família e a recompensar nossos pais, porque isto é bom e agradável diante de Deus, conforme narrava Paulo de Tarso.
A família é uma escola onde aprendemos a amar umas poucas pessoas para um dia amar a Humanidade. É assim que em nossas múltiplas existências aprendemos a lidar com o amor, nos seus diversos aspectos: amor de mãe para filho, de filho para mãe, de irmão para irmão, de avô para neto, de neto para avô, de tio para sobrinho, de sobrinho para tio, de esposo para esposa e assim por diante. E, quando alcançamos amar genuinamente um filho, por exemplo, nosso coração se comove igualmente pelos filhos alheios.
Ponderando-se sobre a lei da reencarnação consolidamos os laços de afetividade com maior número de Espíritos, que (re)nascem sob o mesmo teto que nós. Dessa forma, nossa família espiritual se amplia e os laços de bem-querer se solidificam a cada nova possibilidade de convivência. Deste modo, conviver em família é um desafio e, igualmente, um formidável aprendizado, pois o convívio cotidiano nos oferece ensejo de cinzelar as arestas com os que eventualmente tenhamos alguma contenda.
(Re)nascendo no mesmo reduto doméstico é mais fácil suplantar os desamores, pois os vínculos consanguíneos ainda se compõem numa referência altiva a benefício da indulgência e da coexistência serenas. É por isso que existe a família: para que aprendamos a exercitar o amor na condição de irmãos, pois que todos somos filhos do mesmo PAI.