Rachel Nuwer
BBC Future
Em 24 de março de 2018, mais de 2 milhões de pessoas tomaram as ruas dos Estados Unidos em protestos contra a violência.
A solução para isso varia de acordo com a pessoa com quem você está falando. Algumas querem revogar os direitos dos cidadãos americanos de portar armas, enquanto outros defendem armar ainda mais a população. A maioria dos americanos tem opiniões que se situam entre esses dois extremos.
Mas o que poderia acontecer se o debate fosse de repente e irrevogavelmente resolvido pelo desaparecimento repentino de todas as armas de fogo do mundo, sem uma forma de trazê-las de volta?
Isso não pode simplesmente acontecer como por um passe de mágica. Mas essa experiência mental nos permite tirar a política da equação e considerar racionalmente o que poderíamos ganhar - e perder - se pudéssemos decidir ter menos armas por perto.
O efeito mais óbvio é simples: não haveria mortes por armas de fogo. Aproximadamente 500 mil pessoas ao redor do mundo são assassinadas por essas armas a cada ano.
Em países desenvolvidos, mais vidas são perdidas nos Estados Unidos, onde cidadãos têm de 300 a 350 milhões de armas. Por lá, a taxa de homicídio por arma de fogo é 25 vezes maior do que as taxas de outras nações de alta renda combinadas.
“Cerca de cem pessoas morrem no país diariamente por causa de um tiro”, diz Jeffrey Swanson, professor de Psiquiatria e Ciência Comportamental da Escola de Medicina da Universidade de Duke, nos Estados Unidos.
“Se acabássemos com as armas, muitas e muitas dessas vidas seriam salvas.”
No topo da lista, estariam as vidas perdidas para o suicídio. Cerca de 60% das 175,7 mil mortes por armas de fogo nos Estados Unidos entre 2012 e 2016 foram casos de suicídio. Em 2015, metade dos 44 mil americanos que se suicidaram usaram uma arma.
Mais de 80% das tentativas de suicídio com arma terminam em morte. “Infelizmente, as chances de sobrevivência são muito baixas”, diz o criminologista e sociologista Tom Gabor, autor de Confronting Gun Violence in America (Confrontando a Violência Armada na América, em tradução livre).
E mais: a maioria dos sobreviventes das tentativas de suicídio não chega a tentar tirar a própria vida novamente.
“Algumas pessoas estão decididas a morrer e vão encontrar outra forma de fazer isso. Mas outras são impulsivas uma única vez e, após o episódio, passam a ter vidas felizes e produtivas”, afirma Ted Miller, pesquisador-chefe do Instituto do Pacífico para Pesquisa e Avaliação. “Isto acontece principalmente com crianças”.
Desarmento na Austrália levou a menos mortes
A Austrália fornece evidências reais e convincentes de que ter menos armas disponíveis está relacionado a uma redução significativa em mortes - por suicídio e violência.
Em 1996, Martin Bryant abriu fogo contra visitantes do ponto histórico de Port Arthur, na Tasmânia, matando 35 pessoas e ferindo 23. Para os australianos, aquela tragédia foi um ponto de virada.
Pessoas de todas as inclinações políticas apoiaram o banimento das armas semiautomáticas e rifles. Em questão de dias, uma nova legislação foi promulgada.
O governo comprou armas recém-banidas a um valor justo de mercado e, então, as destruiu, reduzindo o estoque de armas de civis australianos em 30%.
Philip Alpers, professor da Escola de Saúde Pública de Sydney, argumenta que foi significativo o impacto dessa legislação sobre o número de mortes, mesmo levando-se em conta outras possíveis explicações e declínios pré-existentes em taxas de suicídio e homicídio.
“O resultado foi que o risco de morrer por tiros na Austrália caiu mais de 50%, e não houve nenhum sinal de aumento nos últimos 22 anos”, afirma.
Suicídios responderam por uma grande parte dessa queda: até 80% deste tipo de mortes com armas não acontecem mais. “Isso nos surpreendeu bastante”, diz Alpers.
“Estamos mais felizes ainda de perceber que não houve aumento do uso de outros métodos letais. Em outras palavras, não há evidências de que aqueles que pretendiam cometer suicídio ou homicídio simplesmente passaram a usar outra arma.”
Não foi só com suicídios. A taxa de homicídios por armas de fogo na Austrália caiu mais da metade. Além disso, embora críticos americanos geralmente argumentem que os assassinos simplesmente encontrariam outra maneira de matar as vítimas, isto não aconteceu na Austrália.
Em vez disso, homicídios sem armas permaneceram quase no mesmo patamar - o que mostra uma queda geral no número de homicídios.
Casos de abusos domésticos tornam-se menos fatais
Isso também se aplica aos casos de abuso doméstico. Um homem violento com acesso a uma arma tem de cinco a oito vezes mais chances de usá-la contra a mulher.
Se a arma desaparece, parceiros que atacam em momentos de raiva têm menos chances de provocar danos fatais - e talvez sejam até menos propensos a agir de forma violenta.
Embora polêmicas, algumas pesquisas indicam que a mera presença de uma arma torna o comportamento do homem mais agressivo, um fenômeno chamado “efeito das armas”.
Se as armas desaparecessem, os Estados Unidos - onde 50 mulheres são mortas por seus parceiros por mês - provavelmente teriam uma experiência parecida de redução de mortes como na Austrália.
Os Estados Unidos não são diferentes com relação à maioria dos tipos de crime: suas médias são comparáveis às do Reino Unido, da Europa Ocidental, do Japão e de outras nações desenvolvidas.
Quando se trata de homicídio, no entanto, os Estados Unidos têm uma taxa até quatro vezes maior. Isso porque é muito mais provável que uma arma de fogo - em vez de qualquer outra - seja usada em um ataque, o que aumenta o risco de morte em sete vezes.
“Imagine dois homens jovens imaturos, raivosos, impulsivos e bêbados no Reino Unido que saem de um bar e começam a brigar”, diz Swanson. “Alguém vai ficar com um olho roxo ou o nariz sangrando”.
“Mas nos Estados Unidos é mais provável que um deles tenha uma arma, e isso resultará em morte”.
A diferença se resume ao que especialistas classificam como “efeito de instrumentalidade de armas”: o fato de haver uma arma em uso provoca um efeito no resultado final, diz Robert Spitzer, professor de Ciência Política da Universidade do Estado de Nova York. “Não há método mais eficiente para matar alguém que uma arma de fogo”.
Como na Austrália, evidências nos Estados Unidos também mostram que menos armas resultam em menos mortes e ferimentos.
Um estudo de 2017 revelou que as taxas de homicídio por arma de fogo são menores nos Estados americanos com leis mais rígidas sobre armas, enquanto que uma análise de 2014 com menores internados por trauma mostrou que o controle de armas aumentava a segurança de crianças.
Armas também têm relação com uma polícia mais mortal. Embora as chances de uma detenção causar lesões seja a mesma nos Estados Unidos, na Província canadense de British Columbia e na Austrália Ocidental, pesquisas mostram que “quase ninguém morre durante uma prisão na Austrália ou no Canadá”, diz Miller - mesmo que a polícia desses três países portem armas.
Nos Estados Unidos, entretanto, quase 1 mil cidadãos são mortos anualmente pela polícia. Claro, as razões para a violência policial são complexas e envolvem preconceito racial contra cidadãos não-brancos, incluindo contra os próprios policiais afro-americanos. Ainda assim, muitas mortes seriam prevenidas se armas não estivessem envolvidas.
“Muito da brutalidade policial acontece apenas porque os próprios agentes têm medo de serem alvejados”, diz Miller. “Se a polícia precisa se resguardar contra uma arma a todo momento, as interações se tornam mais letais”.
O banimento das armas provavelmente geraria condições mais seguras para a polícia, ele acrescenta. Mais da metade das pessoas mortas pela polícia em 2016 estava armada, e muitas estavam trocando tiros com agentes quando foram atingidas.
Ataques em massa cometidos por terroristas do próprio país também seriam reduzidos. Um estudo de 2017 com mais de 2,8 ataques nos Estados Unidos, Canadá, Europa Ocidental, Austrália e Nova Zelândia revelaram que armas são de longe a forma mais letal de matar o maior número possível de pessoas - até mais do que explosivos e atropelamentos com veículos.
Armas foram usadas em apenas 10% dos ataques, mas representaram 55% das mortes. Nos Estados Unidos, terroristas preferem as armas: de cada 16 ataques terroristas letais desde o 11/09, com exceção de dois, todos os outros envolveram armas de fogo.
“É difícil construir uma bomba, mesmo uma simples”, diz Risa Brooks, professora de ciência política da Universidade de Marquette, nos Estados Unidos.
“Ao dificultar o acesso a armas letais, também se está dificultando a violência praticada por terroristas”.
A violência da natureza humana torna a paz improvável
Mas a história mostra que a violência está entranhada na natureza humana, e armas não são, de forma alguma, um pré-requisito para o conflito.
“Pense no genocídio de Ruanda (em 1994)”, exemplifica David Yamane, professor de Sociologia da Universidade Wake Forest, nos Estados Unids. “Houve uma violência tremenda, grande parte sem armas”.
Mesmo quando levamos esse experimento mental ao extremo, se todas as armas desaparecessem da face da Terra, guerras e conflitos civis continuariam a acontecer.
Mas em vez de olhar para armamentos mais primitivos como lanças, espadas ou arco e flecha, as nações modernas provavelmente se voltariam para outras formas de matar, incluindo explosivos, tanques, mísseis, substâncias químicas e outras armas biológicas.
A guerra nuclear, entretanto, continuaria com pouco apelo dado sua destrutividade extrema, acrescenta Gabor.
As nações também devem inventar novos tipos de armas para preencher as lacunas, argumenta Brooks, com os Estados mais ricos e poderosos provavelmente sendo os mais rápidos em inovar nos meios mais eficientes de matar.
Então, mesmo que a forma de guerra entre os Estados mudasse, “não necessariamente isso mudaria o equilíbrio de poder”, defende Brooks.
O mesmo provavelmente não se aplica a atores não estatais. Em lugares como Somália, Sudão, Líbia, onde as armas de fogo estão facilmente disponíveis, seu desaparecimento repentino reduziria a capacidade das milícias de operar.
“Uma coisa que define atores não estatais é a falta de equipamentos que requerem altos investimentos”, diz ela. “Eles precisam de coisas que são fáceis de conseguir, fáceis de transportar e fáceis de estocar e esconder”.
Uma redução no poder de várias milícias pode soar como algo bom. Mas, em alguns casos, contramilícias são compostas de lutadores resistindo à violência e a governos opressivos, defende Brooks.
Mundo natural
Se as armas desaparecessem, também haveria diferentes resultados para os animais. De um lado, a caça de espécies ameaçadas cairia drasticamente.
Por outro, o controle de animais problemáticos - seja guaxinins com raiva, elefantes em debandada, cobras venenosas ou ursos polares em ataque - seria mais difícil.
“Há muitas razões para a posse de armas, especialmente em um país como a Austrália, que é baseado na agricultura e tem uma história de fronteira semelhante à dos Estados Unidos”, explica Alpers.
Armas também são necessárias para o gerenciamento de espécies invasoras, diz ele.
Milhares de gatos, porcos, cabras, gambás e outras espécies prejudiciais não nativas são mortas a cada ano na tentativa de se preservar ecossistemas delicados, especialmente ilhas.
Acabar com as armas tornaria a batalha ainda mais complicada - e mais desumano. As mortes intencionais de gado ferido e outros animais em situação similar seriam mais brutais sem as armas.
“Se você tem um animal grande e doente, um machado não é um bom substituto para uma morte rápida com uma arma”, comenta Alpers.
Os ganhos e perdas econômicos do desaparecimento das armas
Armas são feitas para matar, mas sua influência se estende a outras facetas da vida e da sociedade, e todas sofreriam mudanças.
Em termos econômicos, os Estados Unidos são os que mais têm a perder se as armas desaparecerem.
A Associação de Comércio da Indústria de Armas calcula que esse mercado gera US$ 20 bilhões (R$ 75 bilhões) em contribuições diretas, além de US$ 30 bilhões (R$ 113 bilhões) em outras contribuições.
Para a economia americana, perder US$ 50 bilhões (R$ 188 bilhões) não seria muito significativo, diz Spitzer. “Não é zero, mas não é muito alto se comparado com a economia como um todo”.
Provavelmente, haveria um modesto ganho econômico com o banimento das armas. Mortes e ferimentos por armas provocam gastos de US$ 10,7 bilhões (R$ 45 bilhões) por ano, e mais de US$ 200 bilhões (R$ 754 bilhões) quando outros fatores são levados em conta.
“Temos de levar em conta todos os custos financeiros da violência armada, não são apenas os custos médicos e de reabilitação das pessoas, mas também os custos do sistema judiciário e a perda de renda das vítimas, e até os custos com qualidade de vida”, sugere Gabor.
De fato, embora os impactos gerais sobre a economia sejam insignificantes, Miller aponta que os ganhos menos tangíveis seriam significativos.
Por um lado, muitas pessoas se sentiriam mais seguras. “Nós veríamos novas gerações que não foram traumatizadas pelo som do disparo ouvido do quarto”, diz. “Isto poderia fazer uma enorme diferença na saúde mental das crianças”.
Os americanos de todas as idades estão cada vez mais com medo de serem atacados em espaços públicos, acrescenta Gabor, seja na escola, no cinema, na boate ou na rua.
Mesmo que tais eventos sejam relativamente raros, “esses tiroteios em massa corroem o tecido social”, afirma. “A sensação de segurança e confiança nos demais é erodida, causando profundos efeitos sociais e psicológicos.”
Muitos poderiam respirar mais tranquilos com as armas longe da vista, mas alguns donos de armas iriam ter a reação contrária e se sentir mais vulneráveis.
“Há pessoas que se armam defensivamente - sejam contra pessoas maiores, ou as que portam facas e armas - para equalizar a situação”, diz Yaman.
Acabar com as armas “certamente deixaria pessoas que são potenciais vítimas de violência incapazes de se defender contra agressores”, completa.
Se as armas realmente ajudam pessoas a ficar seguras e a se defender é algo polêmico. Mas as poucas pesquisas disponíveis sobre o tema tendem a indicar que as armas têm o efeito oposto.
Um estudo de 1993 com base em 1.860 homicídios descobriu que a presença de armas em casa aumenta significativamente o risco de homicídio por um membro da família ou um conhecido próximo, por exemplo.
Outro meta-estudo de 2014 corroborou que o acesso a armas de fogo está associado a homicídios e tentativas de suicídio.
Então, embora alguns donos de armas possam perder a sensação de segurança se as armas sumirem, “dados mostram que isto é uma falsa sensação de segurança”, diz Miller.
A cultura em torno das armas também seria algo que muitos donos desses artefatos sentiriam falta. Mas Miller ressalta que caçadores recreacionais poderiam trocar o rifle por outros métodos, como o arco e flecha.
O mesmo serve para aqueles que visitam campos de tiro por hobby - eles simplesmente poderiam encontrar uma nova atividade. Mas, para muitos daqueles que têm as armas como uma paixão, isso não traria muito conforto.
“Eles perderiam um pouco o prazer, porque preferem comprar uma arma a uma televisão ou qualquer outra coisa. Mas, por outro lado, muitas pessoas ainda estariam vivas. E acho que isso supera a perda de prazer”.
Notícia publicada na BBC Brasil , em 29 de julho de 2018.
Jorge Hessen* comenta
Lemos na reportagem que há os que ainda defendem o armamento da população. Realmente, a mera presença de uma arma torna o comportamento do homem mais agressivo. Mas a história comprova que a violência está entranhada na natureza humana, e armas de fogo não são necessariamente um pré-requisito para a violência social. Concordamos que se todas as armas de fogo desaparecessem da face da Terra, guerras e conflitos civis continuariam a acontecer por outros meios.
Não somos tão ingênuos a ponto de acreditar que a restrição (proibição) do uso de armas de fogo equacione definitiva e imediatamente o problema da violência. Uma arma de fogo pode ser substituída por outras, talvez não tão eficientes. E mais, na ausência de estrutura da aparelhagem repressora e preventiva do Estado, as armas de fogo continuarão chegando às mãos dos indivíduos descompromissados com o bem e fazendo suas vítimas. Por isso, é importantíssimo meditar que devemos aprender a desarmar, antes de tudo, nossos espíritos, e isso só se consegue pelo exercício do amor e da fraternidade.
Consterna-nos saber que o Brasil é um dos líderes mundiais em casos de mortes produzidas com a utilização de armas de fogo, destarte, a sociedade clama por soluções efetivas para o problema da violência urbana. Cremos ser falsa a segurança oferecida pelas armas, especialmente considerando o potencial de alto risco do uso da arma por familiares não habilitados, que podem causar efeitos danosos irreparáveis na vida doméstica do cidadão de bem.
Os espíritas conscienciosos creem, obviamente, que uma das soluções para a criminalidade seria a proibição da venda de armas de fogo em todo o território nacional, ressalvada a aquisição pelos órgãos de segurança pública federal e estadual, municipal e pelas empresas de segurança privada regularmente constituída, na forma prevista em Lei.
É com inquietação que acompanhamos a crescente popularidade de certo “candidato à presidência” que, não obstante, jaza como um ponto fora da curva dos corrompidos, entretanto tem discorrido sobre o aparelhamento da população através da obtenção de armas de fogo. É óbvio que tal discurso preocupa bastante. Não duvidamos da integridade moral de tal candidato, contudo, suas promessas de governo têm sido controversas, ainda mesmo que esteja imbuído de boas intenções, e até mesmo reunir a seu favor excelentes cidadãos brasileiros. Todavia, insistimos dizer que o seu discurso “messiânico” para transformação social sob o látego do contra-ataque através de armas de fogo é cabalmente desfavorável à paz social. Acreditamos mais nas flores.
As leis e a ordem impostas à sociedade como resposta à exigência coletiva são aceitáveis e compreensíveis, porém, conforme advertem os Benfeitores espirituais é mais coerente nos amarmos ao invés de nos armarmos e desta forma fazermos aos outros o que desejaríamos que os outros nos fizessem.
Nesse contexto o ensinamento espírita em seu esboço filosófico e religioso (ético-moral) é e sempre será a ferramenta por excelência determinante para transformação social pela não violência.