Durante longos anos ouvimos vários bordões que foram sendo incorporados à cultura popular e, com isso, certos comportamentos passaram a ser considerados normais. Frases do tipo “Uma mão lava a outra” e “eu gosto de levar vantagem em tudo” permanecem na nossa cabeça e, muitas vezes, agimos em conformidade.
Um ponto interessante é que a frase “eu gosto de levar vantagem em tudo” estava relacionada a um comercial de cigarro, em que o interlocutor dizia que escolheu determinada marca por que “gostava de levar vantagem em tudo”. Certamente até de “morrer” primeiro….
Todavia, este tipo de comportamento caracteriza espíritos condizentes com um mundo de expiação e provas, por privilegiar certos tipos de pensamento em detrimento de outros. Assim, expressões de orgulho e egoísmo ainda encontram eco no nosso íntimo, enquanto que pensamentos mais nobres são facilmente esquecidos, dentre estes estão os ensinamentos de Jesus.
Há cerca de dois mil anos, Jesus nos deixou o seguinte ensinamento: “Disse também àquele que o convidara: Quando derdes um jantar ou uma ceia, não convideis nem os vossos amigos, nem os vossos irmãos, nem os vossos parentes, nem os vossos vizinhos que forem ricos, para que em seguida não vos convidem a seu turno e assim
retribuam o que de vós receberam. – Quando derdes um festim, convidai para ele os pobres, os estropiados, os coxos e os cegos.” (O Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap. XIII, item 7)
Este ensinamento é o princípio básico da caridade, contrário, infelizmente, a muito do que se prega na humanidade atual.
Quando analisamos, mesmo que superficialmente, o livro O Evangelho Segundo o Espiritismo, constituído de 552 páginas apenas, podemos identificar, no nosso comportamento, aquilo necessitamos desenvolver e o que é preciso deixar desaparecer, mesmo que gradativamente. Uma busca rápida do livro em arquivo digital indica: 127 citações da palavra “orgulho; 45 da palavra “humildade”; 54 da palavra “egoísmo” e; 232 da palavra “caridade”. Duas coisas para combater, o orgulho e o egoísmo, e duas para desenvolver, a humildade e a caridade.
Nos estudos com os mentores espirituais da nossa casa espírita, recebemos orientação de como proceder com relação ao nossos desejos de transformação pessoal. É um equívoco comum acreditar que se deve manter a atenção no sentido evitar dar vazão as más tendências. Todavia, segundo a orientação recebida, o foco maior deve ser em realizar as ações virtuosas, pois, desta forma, a mente está voltada para o bom, fortalecendo este padrão e, automaticamente, enfraquecendo o outro.
Na visão espírita, a caridade é uma virtude de extrema importância, tanto que a bandeira do Espiritismo é “FORA
DA CARIDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO”. Esta abordagem se contrapõem a ao que comumente é pregado com relação a várias vertentes religiosas e filosóficas, com cada uma trazendo a salvação apenas para si.
Ao considerar que a salvação será para os caridosos, verificamos que ela está ao alcance de todos, independentemente de credo. Temos, inclusive, que a crença ou não em Deus e em Jesus não é fator preponderante, pois várias são as vertentes filosóficas, sendo que muitas delas são consideradas como religião pelo ocidente, não contemplam a existência de um Deus, todavia, não seria impeditivo para estarem “salvos”.
Podemos, ainda, aprofundar um pouco mais o entendimento das palavras de Jesus quando disse: “Ninguém pode ir ao Pai se não for por mim”. Se aplicarmos a lei apresentada anteriormente, “por mim” não deve ser interpretado como a pessoa de Jesus, mas o que ele representada, que é a caridade em maior grau conhecido na Terra, por ter aqui encarnado para exemplificar os ensinamentos, apesar do que tenha sido necessário e que não temos condições de avaliar.
Precisamos, então, procurar compreender mais profunda e acertadamente o que seja “caridade” e “salvação”.
“Caridade” é um conceito complexo, apesar de parecer simples, e foi magistralmente apresentado por Paulo, como consta n’O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XV:
“Ainda quando eu falasse todas as línguas dos homens e a língua dos próprios anjos, se eu não tiver caridade, serei como o bronze que soa e um címbalo que retine; – ainda quando tivesse o dom de profecia, que penetrasse todos os mistérios, e tivesse perfeita ciência de todas as coisas; ainda quando tivesse toda a fé possível, até ao ponto de transportar montanhas, se não tiver caridade,nada sou. – E, quando houvesse distribuído os meus bens para alimentar os pobres e houvesse entregado meu corpo para ser queimado, se não tivesse caridade, tudo isso de nada me serviria.
“A caridade é paciente; é branda e benfazeja; a caridade não é invejosa; não é temerária, nem precipitada; não se enche de orgulho; – não é desdenhosa; não cuida de seus interesses; não se agasta, nem se azeda com coisa alguma; não suspeita mal; não se rejubila com a injustiça, mas se rejubila com a verdade; tudo suporta, tudo crê, tudo espera, tudo sofre.
“Agora, estas três virtudes: a fé, a esperança e a caridade permanecem; mas, dentre elas, a mais excelente é a caridade.”
Sob o conceito de “caridade” apresentado por Paulo, podemos perceber que a caridade em si é um sentimento, o moto da ação, e não a ação em si ou por si mesma.
Certamente que por “salvação” não devemos entender como o conceito antigo de que “salvação é ir para o céu”, incluindo a interpretação, também antiga, do que seja o céu. Sabemos que, não apenas um, mas inúmeros locais de felicidade eterna existem, que são os mundos mais evoluídos, todavia, não são locais onde, os que lá habitam, passam seus dias na ociosidade, ouvindo harpas ou coisas semelhantes, mas onde habitam os espíritos que trabalham para a finalidade da Criação, onde não podemos imaginar momentos de ociosidade.
Como seres viventes em um mundo de expiação e provas, devemos interpretar “salvação” como “trabalho pela transformação íntima” ou “trabalho para a finalidade da Criação”, isto é, “trabalho por nós mesmos”. Como espíritos endividados, devemos interpretar nossa situação como expressa por Paulo, n’O Livro dos Espíritos, questão 1009: “Quem é, com efeito, o culpado? É aquele que, por um desvio, por um falso movimento da alma, se afasta do objetivo da criação, que consiste no culto harmonioso do belo e do bem…”
Assim, podemos resumir dizendo que caridade, humildade, orgulho e egoísmo não são atos, mas sentimento. Os atos desta ou daquela qualidade são consequência dos sentimentos.
Precisamos, urgentemente, repensar nossos valores tanto na vida cotidiana quanto dentro das casas espíritas. É muito comum ouvirmos que “precisamos fazer a caridade” ou “caridade começa em casa”, todavia, pelo que foi visto, caridade não se faz, mas se sente - ajudar ao outro unicamente pelo simples desejo de ajudar ao outro.
Podemos então dizer “precisamos exercitar a caridade em nós”. Como a exercitamos? Pela prática do amor ao próximo, abnegação e altruísmo.
Assim, caridade não tem início nem final, portanto, não podemos definir onde começa e onde termina.
1 de maio de 2014