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A decisão do Cremers colocou em evidência não apenas a carreira de Ricardo Jones, reconhecido defensor do parto normal, mas o embate entre diferentes concepções de obstetrícia, o ramo da Medicina que cuida da gravidez, do parto e da saúde feminina no pós-parto. Jorge Hessen comenta.

  • Data :05/02/2017
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6 de fevereiro de 2017

A polêmica cassação de médico após a morte de bebê em parto domiciliar

Taís SeibtDe Porto Alegre para a BBC Brasil Ainda nem era dia na China quando Ricardo Jones, de 57 anos, teve o sono interrompido por notificações no aplicativo de mensagens no celular. Era o filho mais velho avisando que a decisão do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers), que cassara o registro médico de Jones quatro meses antes, tinha sido publicada num jornal de grande circulação naquela terça-feira, 22 de novembro de 2016. A publicação concretizava a cassação, tornando público que o obstetra - com mais de 30 anos de carreira - estava impedido de exercer a profissão por “imperícia, imprudência e negligência”. “Comete delito ético o médico que atender parto em local e condições inadequadas colocando em risco a saúde e a vida da parturiente e do concepto, por ação ou omissão”, diz a nota, fazendo alusão ao artigo 1º do Código de Ética Médica. A decisão também considerou que Jones infringiu o artigo 87, por não elaborar prontuário do paciente no caso julgado - um parto domiciliar em 2010 na capital gaúcha, em que o bebê morreu 24 horas após o nascimento. Prevendo a repercussão, Jones foi até o corredor do hotel, onde o sinal fraco da internet chinesa melhorava um pouco, e redigiu sua resposta. “A punição visa atingir não apenas o profissional, mas suas ideias e sua luta contra a violência obstétrica e o abuso de cesarianas em nosso meio”, escreveu. Em poucas horas, a publicação alcançou mais de 5 mil reações e 1,5 mil compartilhamentos no Facebook, e motivou ativistas do parto natural a manifestar apoio na rede social por meio da hashtag #euapoioricjones. Publicada, a decisão do Cremers colocou em evidência não apenas a carreira do médico, reconhecido defensor do parto normal, mas o embate entre diferentes concepções de obstetrícia, o ramo da Medicina que cuida da gravidez, do parto e da saúde feminina no pós-parto.

Processo de cassação Desde a sentença, Jones evita ir ao consultório. Falou com a BBC Brasil no café de um shopping e tem usado como escritório um sítio da família na zona sul de Porto Alegre, onde planeja construir uma ecovila. Em três décadas de trabalho, o obstetra anotou mais de 2 mil partos numa caderneta que o acompanha desde o Natal de 1985, quando fez o primeiro plantão obstétrico num hospital de Porto Alegre. A última anotação data de 29 de junho de 2016 - ironicamente, uma cesariana. Nos últimos meses, ele vinha planejando um afastamento gradual das atividades clínicas e pretendia se dedicar mais a dar cursos e escrever livros - já tem dois publicados, o mais recente se chama Entre as Orelhas - Histórias de Parto (Ideias, 2012). A ida à China era parte do projeto. “Só neste ano, estive na Inglaterra, fui duas vezes à China e ainda vou aos EUA. Fui convidado para ser professor em escolas de parteiras na China, meus livros estão sendo traduzidos para mandarim e inglês. Acabaram 34 anos de bullying. Agora, vou continuar na minha atividade com uma liberdade que eu nunca tive”, projeta. Apesar da aparente empolgação com novos projetos, Ric Jones, como tornou-se conhecido, não está indiferente à cassação do registro profissional, que é irreversível nas instâncias médicas. Ele se articula para recorrer à Justiça comum e pretende denunciar a ação do Conselho em órgãos internacionais de defesa dos direitos humanos. Diz considerar a medida injusta e desproporcional. “É um erro achar que é contra a minha pessoa, é contra a causa.” O coordenador das Câmaras Técnicas do Cremers, Jefferson Piva, é enfático ao afirmar o contrário: “Não estamos condenando o parto domiciliar e, sim, um ato médico que não seguiu os procedimentos necessários”. Os conselheiros entenderam que, no caso julgado, a realização do parto fora do ambiente hospitalar e a remoção do recém-nascido sem ambulância contribuíram decisivamente para a morte do bebê. Jones contesta o juízo do Cremers e sustenta que houve problemas no manejo do caso quando a criança já estava hospitalizada. “A mãe entrou espontaneamente em trabalho de parto e a criança nasceu bem, mas apresentou gemência (gemer por problemas respiratórios) que se prolongou, por isso foi levada ao hospital. O bebê foi internado na UTI, ficou três horas e meia em observação, e somente após quatro horas e meia foi medicado corretamente para suspeita de infecção congênita por streptococcus e morreu 24 horas depois”, alega. Sobre a falta de prontuário, Jones afirma que foi realizado e entregue, mas não foi aceito porque estava sem a assinatura. “Não consta lugar para assinatura no modelo usado pelo hospital”, justifica.

Reincidência pesou na decisão A cassação de um registro médico, pena máxima da categoria, é rara. No Rio Grande do Sul, há apenas outros dois casos nos últimos dez anos, sendo um referente a um implante de prótese peniana sem necessidade e outro por manter uma clínica de aborto. Cada denúncia passa por uma câmara de sindicância. O médico envolvido apresenta sua defesa à relatoria, uma comissão formada por sete conselheiros analisa os argumentos e decide se instaura o processo ou se encaminha uma diligência interna, que seria uma espécie de conciliação. No caso de abertura de processo, o rito é semelhante ao do Judiciário: um conselheiro conduz como instrutor, testemunhas, advogados e as partes são ouvidas, documentos são apresentados, e há o julgamento. As penas são progressivas, desde medidas administrativas até advertência pública, suspensão e, por fim, cancelamento do registro. No caso da última, é obrigatório que o plenário do Conselho endosse a decisão. Em caso positivo, ainda é necessário que o plenário do Conselho Federal de Medicina também se manifeste a favor. Foi o que aconteceu no caso Ric Jones. “Ele não é primário e há outros processos que seguem em andamento no Conselho”, complementa Jefferson Piva, sem detalhar outros casos investigados, por serem sigilosos. Jones afirma que só teve duas complicações graves nos partos que realizou: o parto domiciliar que resultou na cassação e um caso anterior, em 2000, quando morreram mãe e filho após a realização do parto numa reconhecida maternidade porto-alegrense. A paciente, que acabou tendo de passar por uma cesariana, teve embolia aguda por líquido amniótico, uma complicação rara que ocorre quando o líquido amniótico penetra na corrente sanguínea da mãe. Dados da Amniotic Fluid Embolism Foundation, fundação estadunidense especializada no tema, indicam que a incidência é de um entre 15 mil partos na América do Norte e a prevenção é impossível, pois as causas ainda não são totalmente compreendidas. O médico alegou que a embolia estava controlada, mas a paciente teve varicela, contraída na UTI do hospital - a morte ocorreu três semanas após o parto. O bebê ainda resistiu por mais 14 dias. O Cremers havia decidido pela suspensão de Jones por 30 dias, por entender que ele prolongou a decisão pela cirurgia, mas o CFM atenuou a pena para uma advertência privada. Ainda assim, Jones foi condenado na Justiça comum por dois homicídios culposos (sem intenção, da mãe e do bebê), com pena de dois anos e quatro meses de detenção, convertida em prestação de serviços comunitários. “Depois disso, eu sabia que meus partos teriam de ser sempre perfeitos”, diz Jones.

Controvérsia Dados sobre a segurança de se realizar um parto em casa ainda são controversos na bibliografia científica e mais particularmente no contexto brasileiro, onde 98% dos partos ocorrem em hospitais, sendo que 56% são cesarianas - o país é líder mundial nesse procedimento, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Ao apresentar um relatório sobre o tema em 2015, a diretora do Departamento de Saúde e Pesquisas da OMS, Marleen Temmerman, afirmou que se instalou no Brasil “uma verdadeira cultura da cesariana”. Diretor de Defesa e Valorização Profissional da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), o médico Juvenal Borriello relativiza a “epidemia de cesarianas” criticada pela OMS. “Não concordamos com o alto número de cesarianas feitas no Brasil, mas também não concordamos que esse índice seja atribuído única e exclusivamente ao médico. Há vários fatores, como a falta de disponibilidade do ambiente hospitalar e também a opção da própria gestante.” A Febrasgo tem um posicionamento bem definido no sentido de não recomendar partos domiciliares. “Eticamente e cientificamente entendemos que o parto em casa não oferece todo o arsenal de segurança que um hospital oferece. Mesmo em casos de baixo risco, se há uma emergência, o sistema de saúde brasileiro nem sempre proporciona socorro rápido e que os pacientes cheguem em boas condições a um hospital”, explica. O Conselho Federal de Medicina (CFM) não proíbe, mas também não aconselha a realização de partos fora de hospitais. Em uma publicação de 2012, a entidade informa que o plenário do Conselho decidiu recomendar a realização de partos em ambiente hospitalar “de forma preferencial”. Entre os estudos que embasam a recomendação, o CFM cita um artigo publicado no American Journal of Obstetrics and Gynecology que encontrou uma taxa de morte neonatal de 0,2% (32 mortes em 16.500 nascimentos) em partos domiciliares comparada a 0,09% (32 em 33.302 nascimentos) em partos hospitalares. Ou seja, o número de mortes de crianças nos procedimentos realizados em casa seria duas vezes maior do que os que ocorrem em hospitais. Na contramão, o Instituto Nacional para Saúde e Excelência em Atendimento, órgão consultivo do sistema público de saúde britânico disse recentemente que pelo menos 45% das mulheres teriam risco muito baixo de complicações e poderiam ter seus filhos fora de hospitais. Entre mulheres que davam à luz ao primeiro filho, o número de partos sem intervenções médicas foi maior naqueles realizados em casa e em centros de parteiras do que em hospitais, segundo o órgão. Entre as razões para isso, pode estar, de um lado, a sensação de conforto promovida no ambiente familiar e com parteiras conhecidas, e de outro, a ênfase de alguns médicos em optar por intervenções clínicas.

Cenário brasileiro Ricardo Jones se considera solitário por defender o parto natural no meio médico brasileiro desde a faculdade de Medicina, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Tudo começou com o nascimento do primeiro filho, Lucas, hoje com 34 anos. “Tive oportunidade de assistir ao parto porque estava no terceiro ano de Medicina, ninguém permitia que o pai ficasse na sala de parto naquela época. Presenciei todas as violências obstétricas possíveis, a pediatra arrancou o bebê dos braços da minha mulher, mas foi ali que decidi ser obstetra. Fiquei magnetizado pela força do nascimento”, conta. Na faculdade, porém, Jones não encontrava interlocutores, nem entre os professores nem entre os colegas. Um diálogo no corredor de uma das mais tradicionais escolas de Medicina foi marcante. Jones mostrou a um colega que estava lendo um livro sobre o parto de cócoras, de Moysés Paciornik, e ouviu: “Tu só não consegues descer no meu conceito, porque de onde tu estás é difícil cair.” Apelidos pejorativos o acompanharam por toda a carreira, apontavam-no como “médico metido a parteiro” ou “aquele que atende de cocar”. Outros que fazem coro com Jones têm sofrido sanções em outras partes do Brasil, como a obstetra Patrícia Huguet, que teve suspensão preventiva decretada pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo e está impedida de exercer a profissão por seis meses. Conselhos regionais também atuam para desaconselhar partos domiciliares por meio de resoluções, como no Rio de Janeiro, que publicou norma em 2012 proibindo médicos de atuarem em partos em casa. “Um adulto assume o próprio risco, mas no caso do parto a autonomia materna tem um limite porque há outro interessado que não responde por si, o bebê. Não se justifica não fazer parto em hospital no Brasil, que tem uma rede hospitalar altamente confiável”, argumenta o coordenador do Cremers, Jefferson Piva, que é pediatra. O argumento vai diretamente contra a principal bandeira defendida por ativistas, como a doula Maria de Lourdes da Silva Teixeira, autora do livro A Doula no Parto (Editora Ground, 2003). “O lugar e a forma como vai se dar o parto é um direito de escolha da mulher”, sustenta. Não há um banco de dados que permita quantificar o crescimento da procura por doulas nem precisar o número de mulheres que se dedicam à atividade no país, mas pela atuação na área há cerca de três décadas, Teixeira observa que jovens mães têm se interessado mais pelo tema nos últimos anos. O acesso à informação propiciado pela internet, inclusive com cursos online para formação de doulas, é uma das razões apontadas pela ativista. Mesmo o acirramento do embate entre doulas e profissionais de saúde, manifesto em resoluções e legislações que tentam barrar ou regulamentar a atuação das acompanhantes de parto, aponta para um fortalecimento da atividade, embora com realidades diferentes em cada região. Lançada em 2011 pelo Ministério da Saúde, a Rede Cegonha prevê a capacitação e qualificação de doulas e parteiras tradicionais. Uma lei estadual em Santa Catarina, aprovada este ano, assegura a presença das doulas durante o parto e pós-parto imediato em maternidades e hospitais da rede pública e privada. Na Câmara Municipal de Porto Alegre, por outro lado, um projeto de lei que inclui emenda restringindo a presença das acompanhantes de parto está em discussão. Precursor na formação de doulas no Brasil, quando trouxe, em 2002, uma acompanhante de parto dos Estados Unidos para dar o primeiro curso, Ricardo Jones posiciona a cassação do seu registro médico como mais um episódio da controvérsia em torno do direito de escolha das mulheres sobre como, onde e quem vai lhes ajudar a parir. “A medicina quer controlar o corpo da mulher. Sou a pessoa mais vocal da causa da humanização dos partos no Brasil, o que mais fala, o que mais viaja. Imagina o que é falar de parto natural no país das cesarianas?”, pontua. Notícia publicada na BBC Brasil , em 16 de dezembro de 2016.

Jorge Hessen* comenta Creio que um médico que já foi condenado na Justiça comum por dois homicídios, com pena de dois anos e quatro meses de detenção, convertida em prestação de serviços comunitários, tem um histórico profissional pouco recomendável. Portanto, a cassação do seu registro profissional, inobstante com mais de 30 anos de carreira, se justifica pela imperícia, imprudência e negligência cometida de forma reincidente. Ora, se artigo 1º do Código de Ética Médica consigna ipsis verbis que “comete delito ético o médico que atender parto em local e condições inadequadas colocando em risco a saúde e a vida da parturiente e do concepto, por ação ou omissão”, creio que tal dispositivo não pode ser desvalido. Portanto, não percebo a punição como específica para atingir a luta do médico contra a violência obstétrica e o abuso de cesarianas em nosso meio, mas pela insistência do profissional por transgredir as regras comuns a todos os colegas. Os conselheiros não condenaram a questão do parto domiciliar e, sim, um ato médico que não seguiu os procedimentos necessários. Pois realizações de parto fora do ambiente hospitalar sem condições de remoção do recém-nascido sem ambulância sob quaisquer conjuntura contribui, sem dúvida, para colocar em risco a vida do bebê. Sabemos que  o Conselho Federal de Medicina (CFM) não proíbe, mas também não aconselha a realização de partos fora de hospitais. Em uma publicação de 2012, a entidade informa que o plenário do Conselho decidiu recomendar a realização de partos em ambiente hospitalar “de forma preferencial”. Conselhos regionais também atuam para desaconselhar partos domiciliares por meio de resoluções, como no Rio de Janeiro, que publicou norma em 2012 proibindo médicos de atuarem em partos em casa. Sob o ponto de vista espírita, o tema nos remete à reflexão sobre o bom senso, subordinação e resignação. Um médico que não se resguarda sob o manto da prudência, da disciplina e do cumprimento das regras profissionais, seja quem for, estará sempre sujeito às medida repressivas e legitimadoras da lei.

  • Jorge Hessen é natural do Rio de Janeiro, nascido em 18/08/1951. Servidor público federal aposentado do INMETRO. Licenciado em Estudos Sociais e Bacharel em História. Escritor (dois livros publicados), Jornalista e Articulista com vários artigos publicados.