A inflação da saúde
A ciência encontrou a cura para doenças, revolucionou a qualidade de vida de pacientes e aumentou a longevidade da população. Mas está cada vez mais difícil financiar todos esses avanços
Giuliano Guandalini e Cíntia Borsato
Poucas famílias estavam tão protegidas financeiramente de emergências médicas quanto os Bortman, de São Paulo. Sendo neurocirurgião, o pai, Alberto, possuía contatos nos melhores hospitais e uma extensa rede de amigos médicos. Um plano de saúde privado também resguardava a mulher e os três filhos do custo de doenças ou acidentes. Contavam ainda com o acesso universal e gratuito à saúde, um direito gravado na Constituição. Difícil imaginar, portanto, uma família mais precavida. Na noite do dia 1º de abril de 2006, essa percepção foi abruptamente desfeita em um acidente com a filha do meio do casal, a estudante de medicina Daniela Bortman. Então com 23 anos, Daniela pegou carona no carro de um amigo a dois quarteirões da república de estudantes onde morava, em Taubaté, no interior de São Paulo. O carro em que estava foi atingido por outro automóvel, que cruzou o sinal vermelho em alta velocidade. Dani sofreu uma lesão medular que a deixou tetraplégica.
O acidente revelou que a família não estava tão resguardada como supunha. Ainda que o plano de saúde tenha coberto os mais de 150.000 reais gastos com a UTI de ponta onde Daniela permaneceu por um mês, os maiores desafios vieram depois. Para que Daniela pudesse deixar o hospital, sua casa precisou ser toda adaptada para recebê-la. A família contratou enfermeiras e fisioterapeutas, além de comprar equipamentos especiais. Para evitar úlceras devido à falta de movimentos, uma das principais causas de morte em pacientes como Daniela, a família contou com uma inovação tecnológica: um colchão informatizado ligado a um microcomputador que se move de acordo com a pressão e o tempo. Manter essa estrutura custa, ao mês, mais de 13.000 reais. O plano de saúde de Daniela não quis pagar essa nova etapa do tratamento. Também alegou que, por sua natureza extra-hospitalar, o tratamento domiciliar deveria ser coberto pela saúde pública. Alberto buscou então ajuda do governo, mas sem sucesso. “Nenhum hospital público em São Paulo tem estrutura para a reabilitação da Daniela”, diz ele. Restou à família mover um processo judicial contra a seguradora. Uma liminar obrigou o plano de saúde a pagar 6.000 reais mensais com o tratamento da estudante. Alberto arcou com o restante. Ao todo, as despesas da família com saúde saltaram de 1.300 reais, antes do acidente com Daniela, para 10.000 reais. Alberto vendeu um imóvel, ampliou sua jornada nos hospitais e adiou o projeto de mestrado. Diz ele: “Sou médico há trinta anos. Estava me preparando para diminuir a carga de trabalho. Hoje, mal tenho tempo de estudar. Trabalho dezesseis horas por dia de segunda a segunda”.
Longe de ser uma exceção, o drama dos Bortman é um retrato do dilema que preocupa famílias e governos no mundo todo. O avanço tecnológico reduziu os custos intrínsecos à existência humana em diversas áreas. As pessoas gastam menos hoje para morar, locomover-se, vestir-se e comunicar-se. Mas não para curar-se e tratar-se de doenças. As UTIs, por exemplo, evoluíram muito na última década, o que foi fundamental para a recuperação de pacientes como a estudante Daniela. Mas o custo de uma diária em terapia intensiva subiu 90% desde 1997. Com isso, a inflação da saúde soma-se à de alimentos no mosaico de preocupações de famílias e governos no mundo todo. Mas o encarecimento dos alimentos é muito recente. Entre 1974 e 2005, o preço da comida despencou três quartos. No mesmo período, os gastos do país com saúde avançaram de 5% para 10% do produto interno bruto (PIB). Além disso, pode-se elevar a produção e baratear os alimentos usando a tecnologia no campo. Os tratamentos médicos, por sua vez, só ficam mais caros com a aplicação tecnológica.
Mas o que diferencia a indústria médica da eletrônica ou automobilística, em que a tecnologia tende a baratear os produtos? Por que os preços sobem mais do que a capacidade de pagamento das famílias, das seguradoras e dos governos? O primeiro fator é a tecnologia. Tome-se o caso das próteses. O alto custo dos stents (dilatadores de artérias) cardíacos fez sextuplicar o preço de uma angioplastia em apenas sete anos. Há também o gasto crescente com remédios. Na estrutura de custos da UTI do Hospital Albert Einstein, um dos melhores hospitais da América Latina, o que mais subiu nos últimos dez anos foram os medicamentos – 170% de aumento. Outros fatores de mercado insuflaram o encarecimento dos equipamentos. “Em alguns casos, há poucos fornecedores. A falta de concorrência entre os fabricantes impossibilita que os preços caiam para os pacientes”, diz o infectologista David Uip, que deixou recentemente a direção do Instituto do Coração (InCor).
Outro ponto é que no Brasil, mas não apenas aqui, o sistema funciona como se não tivesse um dono preocupado com sua racionalidade e eficiência. As despesas sempre são bancadas por um “terceiro pagador”. Isso significa que, num primeiro momento, o financiamento não sai diretamente do bolso nem dos pacientes, nem dos hospitais, nem dos médicos. Quem paga a conta do hospital, normalmente, são as seguradoras ou o governo. O problema é que esse modelo conflita com o desejo natural e justo que os pacientes têm de buscar o melhor tratamento, ainda que esse esforço se revele, depois, exagerado. Uma pessoa que tenha um plano de saúde deveria ter o direito de fazer quantos exames e consultas seus médicos acharem necessários. Mas se ela fizer isso de forma pouco criteriosa e abusiva, dizem as seguradoras, sobrecarregará as despesas. Raciocínio similar, sempre segundo as seguradoras, vale para o médico que, por imperícia ou para inflar os seus honorários, pediria mais exames do que o necessário ou para os hospitais que não se preocupariam em combater o desperdício na utilização de equipamentos e materiais. A guerra de acusações até hoje não contribuiu para melhorar a vida do principal interessado em que o sistema funcione: o paciente.
Nos últimos anos, as seguradoras passaram a pressionar os hospitais a cobrar menos pelos serviços prestados. Em um segundo momento, algumas investiram em sua própria rede de hospitais, em um processo conhecido como verticalização. Nesse modelo, uma operadora controla todos os serviços, o que reduz drasticamente os custos. Os críticos desse sistema, porém, dizem que ele leva a uma inevitável queda na qualidade. Afirma o oftalmologista Claudio Lottenberg, presidente do Einstein: “Ao atuar nas duas pontas, na venda do plano e no atendimento à saúde, a seguradora reduz gastos essenciais, o que se traduz em perda na qualidade do atendimento”. Uip reforça o coro: “Os hospitais precisam, sim, combater o desperdício e ser mais eficientes. Mas procedimentos de alta complexidade têm custo elevado. As seguradoras precisam entender que as cirurgias em hospitais de referência são mais caras, mas o pós-operatório dos pacientes é melhor, o que diminui custos futuros de todos”.
Felizmente, essa queda-de-braço entre hospitais, fornecedores e seguradoras só existe porque a medicina progrediu, e o acesso à saúde democratizou-se. Até o século XIX o atendimento ficava restrito aos mais ricos, os únicos capazes de pagar pelos serviços particulares. As pessoas sem posses dependiam da benemerência das instituições religiosas. O primeiro país a estabelecer um sistema de atendimento médico foi a Alemanha, com a Lei do Seguro de Saúde de 1883, durante o governo do chanceler Otto von Bismarck. Aos poucos, outras nações européias seguiram no mesmo caminho. Hoje, todos os países do planeta possuem algum tipo de sistema de saúde. No Brasil, a Constituição de 1988 tornou, em tese, o acesso à saúde gratuita um direito universal de todo cidadão brasileiro. Para atender a esse objetivo, foi criado, há vinte anos, o Sistema Único de Saúde (SUS). Na prática, no entanto, ocorreu com a saúde algo semelhante ao observado na educação. A qualidade baixa do atendimento público empurrou a classe média para o sistema privado. Atualmente, 39 milhões de pessoas possuem algum plano de seguro saúde e assistência médica – um a cada cinco brasileiros.
As perspectivas para a medicina são muito animadoras no tocante aos avanços tecnológicos que se vislumbram. Mas o quadro clínico das finanças inspira cuidados e lança indagações desafiadoras:
• Como popularizar tecnologias e medicamentos eficientes, mas cada vez mais caros?
• Se os recursos já são escassos, como ampliar o atendimento para as pessoas que ainda não possuem cobertura?
• Como reduzir os gastos hospitalares sem que haja uma queda na qualidade do atendimento?
A resposta mais simples, fácil e populista é reivindicar mais recursos públicos. Isso é o que se costuma ouvir no Brasil. Entretanto, especialistas em gestão da saúde afirmam que é possível fazer mais com os recursos disponíveis. Em outras palavras, ampliar a produtividade do setor, mesmo diante das pressões inescapáveis decorrentes da absorção tecnológica. Essa é a abordagem mais recente e inovadora para aplacar a explosão dos gastos em saúde. Para que isso ocorra, terá de haver um aprimoramento na maneira com a qual a saúde vem sendo administrada. Na avaliação da professora Regina Herzlinger, da Harvard Business School, uma das maiores especialistas do assunto nos Estados Unidos, a administração do setor de saúde não evoluiu como em outros ramos da atividade econômica. Afirma a economista: “Os hospitais são notórios pela falta de inovações administrativas que reduzam custos e aumentem a produtividade”. De acordo com Herzlinger, a contabilidade da saúde não vai fechar enquanto não se romper o modelo em que hospitais e médicos são remunerados pela quantidade, e não pela qualidade de seu trabalho.
O Brasil carrega vícios semelhantes aos dos Estados Unidos. A discussão em torno de critérios de avaliação de qualidade apenas engatinha no país. “O Brasil é referência mundial em cobertura ampla de saúde, mas o grande problema é a qualidade desse serviço”, diz Andre Medici, especialista em desenvolvimento social no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). De fato, estudos indicam que a falta de recursos não explica completamente as mazelas no setor. Afirma Bernard Couttolenc, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo: “O Brasil gasta com saúde mais do que outros países em desenvolvimento, e nem por isso possui indicadores mais favoráveis”. Financiada pelos impostos, que tragam 40% de tudo o que o país produz, a saúde representa o maior orçamento do governo, mas não chega perto de fornecer um nível mínimo de decência. Por outro lado, a parcela da população que possui plano de saúde pago integralmente por ela, ou com a ajuda das empresas onde trabalha, também não está completamente coberta. Um sistema em que nenhuma das partes está satisfeita precisa de urgente conserto. O drama está no fato de que ninguém sabe por onde começar.
Matéria publicada na Veja.com , em 14 de maio de 2008.
Jorge Hessen comenta*
SAÚDE PÚBLICA E AS PROPOSTAS ESPÍRITAS
Ao fazermos esta oportuna reflexão a respeito dos planos de saúde, nos vêm à mente obviamente a questão da doença humana e seu tratamento. Muitos governos se esforçam para que haja o acesso universal e gratuito à saúde, por ser um direito inscrito na Carta Magna de diversos países. Embora o avanço tecnológico tenha reduzido os custos intrínsecos à existência humana em diversas áreas, apesar de as pessoas gastarem menos hoje para morar, locomover-se, vestir-se e comunicar-se, porém gastam demasiadamente para curar-se e tratar-se de doenças. Nessa direção os tratamentos médicos ficam mais caros em face da aplicação tecnológica. Há também o gasto crescente com remédios em face da inexistência de concorrência entre os fabricantes o que impossibilita que os preços sejam acessíveis à classe popular.
No Brasil, a Constituição de 1988 tornou, em tese, o acesso à saúde gratuita um direito universal de todo cidadão brasileiro. Para atender a esse objetivo foi criado, há duas décadas, o Sistema Único de Saúde (SUS). Na prática, no entanto, ocorreu com a saúde algo semelhante ao observado na educação. A qualidade baixa do atendimento público empurrou a classe média para o sistema privado.
O Ministério da saúde possui o maior orçamento do governo. O Brasil gasta com saúde mais do que outros países em desenvolvimento, e nem por isso possui indicadores mais favoráveis, ou seja o País não oferece um nível mínimo de atendimento eficaz. Observamos o sucateamento do setor público de saúde no Brasil, razão pelo qual os Centros de Saúde não dão conta da demanda da população, seja por falta de equipamentos básicos necessários em atendimentos de emergência, seja pelo número reduzido de profissionais, seja pelos baixos salários que esses profissionais recebem e principalmente pelo número excessivo de pacientes a serem atendidos, entre outros fatores, que têm provocado uma reação de abandono do serviço público por esses profissionais.
As pessoas tendem a buscar meios alternativos para tratar os seus males, e dentre os lugares procurados estão os espaços religiosos, em face da oferta de meios que possibilitem o acolhimento, e que dêem um certo significado e atenção ao que a pessoa está sentindo, e que, em muitas das vezes, se aproxima da real condição da mesma. Outras radicalizam mais, por isso, ainda em alguns lugares se vê a “rezadeira”, o “curandeiro” disponíveis a atender em casos de emergência. Através da reza e dos curativos feitos com ervas, por exemplo, dizem curar as pessoas sem cobrar nada, apenas pelo fato de terem recebido o “dom de Deus”.
Todavia, muitos procuram as casas de orientação espírita, pois aí se encontram tratamentos para o bem-estar dos indivíduos, tendo o centro um papel positivo na prevenção e na manutenção da saúde. Já que o governo tem suas dificuldades na área, os espaços religiosos procuram oferecer alívio a esses males e sofrimentos, como também conforto, solidariedade e acolhimento. Daí a representação da relevância das práticas espíritas na saúde da população. O Centro Espírita percebe a prevenção de saúde de forma ampliada e contínua, através da difusão (sem prosélitos) das suas atividades. Portanto, papel desempenhado pelas estruturas espíritas e/ou religiosas, de forma geral, pode ser, de fato, entendido como apoio a saúde na sociedade.
A temática de práticas espíritas relacionadas a saúde pública é pouco discutida, razão pela qual não encontramos muitas publicações referentes à percepção desse fenômeno social pelos grupos espíritas. Os fatos têm confirmado o papel do apoio social do Centro Espírita na percepção de bem-estar e sua relação com a concepção do amor e da caridade como fundamentos da conduta humana explicadas como saudável e capaz de manter a saúde da população.
Portanto, não se pode desconhecer nesse debate essas formas de medicina alternativa (ou saúde alternativa), atualmente com grande penetração nos centros urbanos, tanto nas camadas médias quanto nas camadas populares e são percebidas como “alternativas”, ”paralelas” ou “complementares” à biomedicina. Mesmo os pacientes que se tratam pela medicina convencional, freqüentemente buscam os recursos das casas espíritas. Sabemos que grupos espíritas pequenos, de pessoas amigas, conhecidas, produzem soluções mais eficazes aos problemas cotidianos, ou seja, percebe-se o processo terapêutico do contato fraterno no equilíbrio das doenças.
A fé raciocinada proposta pelo Espiritismo oferece um sentido à vida, oferece consolo, energias e orientações ante as situações de angústia, de incerteza pessoal. Essa fé está ligada à vida concreta dos que nela depositam a sua crença. Em todo tipo de religião, está implícito um problema central: liberar o homem da incerteza de sua transcendência, dar sentido à sua vida no mundo e além dele; numa palavra, conscientização do mundo espiritual.
As propostas terapêuticas espíritas se caracterizam em atividades desenvolvidas pelos centros através de orações, passes magnéticos, atendimentos fraternos, desobsessão, águas magnetizadas (fluidificadas) usadas como forma de tratamento alternativo, paralelo ao tratamento médico. As pessoas que participam desses processos se sentem com menos medo, menos ansiosas, mais estáveis emocionalmente, menos isoladas e mais preocupadas umas com as outras. O Espiritismo procura explicar os aspectos psicológicos e a sua relação com as doenças.
Evocamos o moderno uso do termo psicossomático que remete a antigas concepções: a importância dos fatores psicológicos na causa das doenças e uma visão integral de ser humano. As patologias da modernidade denominadas “doença da civilização”, estão relacionadas ao estresse, às dietas ricas em gordura e açúcar, ao fumo, ao álcool, às drogas, à vida sedentária e à poluição ambiental, características da vida moderna.
Reflitamos pois que o corpo físico na Terra é o filtro vivo de nossa alma. Os nossos pensamentos expressar-se-ão, segundo os sentimos, tanto quanto nossos atos serão exteriorizados, conforme pensamos. Todos os processos emocionais do coração atingem o cérebro, de onde se irradiam para o campo das manifestações e das formas. Para que não fiquemos no eterno conflito entre planos de saúde particulares versus políticas públicas sobre a saúde da população, recordemos que a situação ideal será sempre a do equilíbrio com a vigilância concentrada na mente, pois que influência do mundo espiritual sobre o mundo material é muito mais intensa do que se imagina, conforme a resposta à questão 459 de “O Livro dos Espíritos”. Particularmente, o conhecimento da influência dos espíritos sobre a saúde do ser humano é um tópico de grande importância para a Ciência e de especial relevância para o nosso aprimoramento moral.