O retrato cruel do trabalho escravo
Sonia Zaghetto correspondente Brasília
Vergonha nacional, chaga, nódoa. Quando se trata de classificar o trabalho escravo, as palavras são sempre carregadas de indignação. Mas, na prática, até hoje ninguém foi condenado por violar os direitos humanos de 28 mil brasileiros e a Câmara dos Deputados pôs na gaveta, por quatro anos, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 438 que confisca as terras de quem explora a escravidão contemporânea.
Os números do trabalho escravo impressionam. Até hoje foram libertados 27.901 trabalhadores nas 633 operações de fiscalização realizadas em 1.895 propriedades rurais. O total de indenizações chega a R$ 38,9 milhões. Mas acredita-se que só metade dos casos são denunciados no Brasil. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que entre 25 mil e 40 mil trabalhadores sejam mantidos em condições análogas à de escravidão. Pior, atrelado ao trabalho escravo há uma cascata de outros crimes: narcotráfico, desmatamento e tráfico de pessoas.
Estatísticas e argumentos ainda não sensibilizaram parte do Câmara dos Deputados, especialmente os integrantes da chamada bancada ruralista. Os parlamentares – que D. Tomás Balduíno, da Comissão Pastoral da Terra, classifica de “escravagistas” – conseguiram paralisar a tramitação de praticamente todas as iniciativas relacionadas ao assunto.
Segundo a organização Repórter Brasil, pelo menos 16 projetos de lei relacionados a trabalho escravo tramitam no Congresso. Eles propõem penas mais severas, aumento das multas, restrição ao crédito e aos contratos com órgãos públicos, mas a maioria está parada há mais de dois anos. A mais antiga proposição data de 1997 e é de autoria do deputado Paulo Rocha (PT-PA): inclui na definição de trabalho escravo a exploração de mão-de-obra infantil. O projeto está parado há cinco anos na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.
PEC está arquivada há sete anos
Esta semana, uma manifestação em Brasília pediu a aprovação da PEC 438/2001, conhecida como “PEC do trabalho escravo”. Milhares de agricultores de seis Estados deram as mãos a parlamentares, artistas e representantes de grupos sociais e de entidades de classe para compor um “abraço” no prédio do Congresso Nacional. A idéia era sensibilizar os parlamentares a votarem a PEC apresentada há sete anos pelo ex-senador Ademir Andrade (PSB-PA) e que espera pela votação em segundo turno desde 2004. O texto, já aprovado em dois turnos pelo Senado Federal e em primeiro turno pela Câmara, deverá voltar ao Senado devido às mudanças propostas por membros da bancada ruralista.
Governo, juristas e organizações civis consideram a PEC 438 essencial para o combate ao trabalho escravo, mas a proposta enfrenta forte oposição porque expropria, sem direito a indenização, as terras onde houver flagrante de trabalho degradante.
“A Câmara dos Deputados é uma casa de interesses e há aqui representantes dos ruralistas. Não podemos aceitar que homens e mulheres tenham rebaixada a sua condição humana para satisfazer os interesses de fazendeiros gananciosos”, critica Paulo Rocha.
O presidente da subcomissão do Trabalho Escravo do Senado, José Nery (PSol-PA), também atribui a tramitação lenta aos interesses ruralistas contrariados: “O setor resiste a acabar com essas práticas criminosas. Como os seus representantes têm força no Congresso, dificultam a punição exemplar”. O relator da PEC, Tarcisio Zimermmann (PT-RS), reconhece que “todos os temas progressistas e avanços no direito dos trabalhadores enfrentam uma correlação de forças desfavorável no Congresso”.
É inegável que o aspecto econômico é responsável pelas dificuldades enfrentadas pelas proposições legislativas relacionadas ao trabalho escravo. A maioria das operações de resgate ocorre em grandes propriedades rurais, entre elas fornecedoras de produtos destinados ao mercado interno e à exportação. No ano passado, foi recorde o número de flagrantes de trabalho degradante em fazendas de um segmento tradicional na economia brasileira: o setor canavieiro. Foram autuadas fazendas de cana-de-açúcar e usinas no Pará, Goiás, Alagoas e Mato Grosso do Sul. Entre os flagrados estão empreendimentos da usina Brenco, uma das maiores produtoras de etanol do País, e a Usina Debrasa, da Companhia Brasileira de Açúcar e Álcool.
O desafio agora é se o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP), vai conseguir cumprir a promessa de pôr a PEC em votação este semestre e atender à recomendação do ministro Moura França, do Tribunal Superior do Trabalho: “É preciso extirpar essa nódoa que envergonha o Brasil em pleno século 21”.
Punições estão previstas apenas no papel
O Código Penal brasileiro determina: pena de dois a oito anos de prisão para quem reduzir outra pessoa a condição análoga à de escravo, seja submetendo-a a trabalhos forçados, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho ou restringindo sua locomoção em razão de dívida. Mesmo assim, em doze anos de fiscalização, ninguém jamais foi condenado por manter mão de obra escrava.
E não faltaram flagrantes. No ano passado, a fiscalização do Ministério do Trabalho aumentou em 72% o número de trabalhadores libertados. Foram 5.975 trabalhadores nas 115 operações em 205 propriedades rurais de todo o País. Nos dois primeiros meses deste ano, 158 pessoas já haviam sido resgatadas e o pagamento de indenizações totalizava R$ 394 mil.
“Ninguém foi condenado. Isso é uma dívida que o Poder Judiciário tem com esses brasileiros. É uma condescendência de quem tem obrigação de julgar esses crimes”, critica o senador José Nery. “É difícil colocar homens brancos e ricos na cadeia”, lamenta Andrea Bolzon, coordenadora do Programa de Trabalho Escravo da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
O que tem funcionado bem é a Justiça Trabalhista. Nas operações, os trabalhadores são retirados das fazendas e têm assegurado o recebimento de salário, férias proporcionais, décimo terceiro, seguro-desemprego, alimentação, hospedagem, além de transporte aos locais de origem.
Por outro lado, além das indenizações, os fazendeiros são incluídos na chamada “lista suja”, disponível no site do Ministério do Trabalho e onde o governo divulga os nomes dos proprietários e os imóveis nos quais foi constatado trabalho escravo. Com isso, os fazendeiros sofrem uma série de restrições, inclusive o acesso a créditos.
Mas nem multas milionárias e restrições legais conseguem impedir os fazendeiros de reincidirem. No mês passado, quando uma equipe da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Pará retirou 35 pessoas da fazenda Bonsucesso, em Paragominas, o fazendeiro Gilberto Andrade teve de pagar R$ 45 mil em indenizações. Ele era reincidente: seu nome já constava na chamada Lista Suja por causa de um flagrante no Maranhão, em 2005.
Por isso a “PEC do Trabalho Escravo” é considerada essencial. Espera-se que ela contribua para inibir as práticas degradantes. “É de se esperar que com a possibilidade da perda da propriedade, o empregador rural pense duas vezes antes de submeter trabalhadores a tais condições de trabalho”, diz Marcelo Campos, da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho.
Impunidade refletida nas condições subumanas
A expressão “situação análoga à de escravo” traduz uma rotina de violência, exploração e tortura. A maioria dos trabalhadores resgatados nas operações de fiscalização é encontrada em condições subumanas.
São homens simples, com baixa escolaridade (a maioria é analfabeta ou semi-analfabeta), que não possuem terras, mas acumulam experiência em atividades rurais. Seduzidos por promessas enganosas de carteira assinada, seguro de saúde e alojamento, os trabalhadores descobrem tarde demais que os salários atrasam e que não podem se comunicar com as famílias. Também são surpreendidos por alojamentos precários, sujos, sem instalações sanitárias e compartilhados com ratos e baratas. Lixo, roupas, restos de comida e pertences pessoais se misturam. Reclamações são punidas com surras e ameaças de morte.
Uma prática regular é a obrigação de pagar por quase tudo: aluguel, alimentos, produtos de limpeza e até por equipamentos de trabalho. As dívidas são anotadas em um caderno e descontadas do salário do trabalhador. Não sobra quase nada.
Em fevereiro passado, quando o grupo de fiscalização chegou à fazenda Bonsucesso, em Paragominas, encontrou 35 trabalhadores vivendo em meio a esterco de boi em um curral abandonado, alimentados com restos de carne. Com eles estavam duas crianças, filhos de trabalhadores, e três adolescentes contratados para trabalhar.
O trabalhador que fez a denúncia carregava cicatrizes recentes de ferro quente. Ele informou que o patrão e outros dois homens o haviam torturado quando reclamou da alimentação e do salário atrasado.
Segundo Marcelo Campos, assessor da Secretaria de Inspeção do Trabalho, do Ministério do Trabalho, os trabalhadores identificados em condição análoga à de escravo normalmente são submetidos a mais de uma das hipóteses previstas no artigo 149 do Código Penal. “As mais comuns são servidão por dívida, jornada exaustiva e trabalho degradante, que inclui total ausência de garantia de direitos relacionados à saúde e segurança: alojamentos, refeições, água potável, equipamentos de segurança”, informa.
Promessas de uma vida melhor que nunca chega
“A gente não tinha domingo nem feriado. Havia noite em que eu deitava na rede e chorava pensando que nunca mais ia ver meus filhos”. O depoimento de Ivo Ferreira Barros – um dos trabalhadores resgatados no ano 2000 em uma fazenda no município paraense de Piçarra – retrata com exatidão a experiência do trabalho escravo.
Nascido em Barra do Corda, no Maranhão, Ivo tem pouca escolaridade e sabe trabalhar somente no campo. Aos 18 anos de idade saiu “pelo mundo” e, dezesseis anos depois, estava submetido a condições de trabalho degradantes. Seduzido pelas promessas de um “gato”, um aliciador chamado Sebastião, ele foi trabalhar na Fazenda Estrela das Alagoas. A promessa era de receber R$ 8 mil pelo trabalho de desmatar 20 alqueires de terras para pastagem. Ele se conformou com um adiantamento de R$ 50,00.
Com outros 85 trabalhadores, Ivo foi submetido a uma jornada de 12 horas ininterruptas de trabalho, vigiado por dois pistoleiros. Acordava às 5 da manhã e trabalhava até às 18 horas derrubando árvores de mogno, castanha, cedro e jatobá. Dormia em uma barraca de lona no meio do futuro pasto. “A gente tomava banho, bebia a água e fazia as necessidades no mesmo lugar: o rio”, relata.
Terminado o trabalho, não recebeu o dinheiro e foi informado que deveria desbastar mais 300 alqueires. Aterrorizado, viu os companheiros que reclamavam serem ameaçados de morte. Decidiu fugir. Fingiu que ia pescar à noite e escapou com dois amigos. Passaram sede e fome, dormiram ao relento e se apavoraram quando souberam, em um povoado, que eram procurados por pistoleiros. “A dona de um restaurante nos deu uma bacia de comida. Foi tudo o que comemos durante quatro dias. A gente andava de dia pela mata e de noite pela estrada. Quando vinha um carro a gente corria para dentro do mato”. Andaram quase 200 quilômetros até chegar à sede da Comissão Pastoral da Terra em Marabá. “Eles nos deram cama, roupa, comida e calçado”. Ivo esperou 26 dias para, com o Grupo Móvel do Ministério do Trabalho, entrar de novo na fazenda e ver o resgate dos companheiros que ficaram. A indenização foi de R$ 2.500,00.
Hoje, aos 42 anos e com cinco filhos, Ivo vive no acampamento João Canuto, em Sapucaia. “Se algum dia eu conseguir uma terra só para mim, nunca mais trabalho para patrão”, promete.
Pará: campeão absoluto em ocorrências
Com 9.987 trabalhadores resgatados em 464 fazendas, 4.878 autos de infração e indenizações de R$ 13,7 milhões, o Pará é campeão absoluto em casos de trabalho escravo. O fato de, nos últimos doze anos, um terço dos flagrantes terem ocorrido em território paraense fez soar o alarme e o governo do Estado partiu para um conjunto de ações a fim de erradicar esse tipo de crime.
O caso mais rumoroso de 2007 ocorreu quando o grupo móvel resgatou 1.064 pessoas submetidas à escravidão na usina de cana-de-açúcar Pagrisa, em Ulianópolis. Um grupo de senadores formou uma comissão externa para averiguar o caso, argumentando que os fiscais cometeram abusos. O Ministério do Trabalho suspendeu a fiscalização alegando falta de segurança. O caso esfriou quando o ministro do Trabalho, Carlos Lupi, divulgou imagens e relatos da operação que confirmavam a situação trabalhista degradante.
O governo estadual seguiu o exemplo da União, que em 1995 reconheceu a gravidade do problema e, oito anos depois, lançou o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. O resultado foi imediato: um ano depois de lançado o Plano, o número de operações e o de trabalhadores resgatados duplicou: 5.223 libertações em 188 fazendas fiscalizadas.
Em setembro do ano passado, a governadora Ana Júlia Carepa assinou decreto criando a Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo do Pará (Coetrae), que vai elaborar e acompanhar a execução do Plano Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo.
A secretária de Estado de Justiça e Direitos Humanos do Pará, Socorro Gomes, informa que outra iniciativa de impacto será implementada ainda este ano. É o pacto proposto pelo Pará aos Estados do Maranhão, Piauí, Bahia, Tocantins e Mato Grosso, onde o trabalho escravo é expressivo. A estratégia é erradicar a prática mediante ações compartilhadas. Estão previstas, além da universalização dos direitos humanos, o enfrentamento das causas, repressão e assistência às vitimas e familiares. “Nosso objetivo é eliminar essa chaga utilizando mecanismos de inclusão social. O Pará vai ser noticia não mais como campeão do trabalho escravo, mas como líder em ações pela erradicação desta prática desumana”, diz Socorro Gomes.
Segundo a secretária, o Estado vai investir em educação, a fim de combater o problema atacando as causas. Entre as primeiras ações da Coetrae estão cursos de capacitação para professores do sul-sudeste do Pará. “Vamos informar os alunos das redes públicas de ensino sobre o trabalho escravo. Cada escola será um centro irradiador de informações que vai transmitir à comunidade os cuidados para não ser vítima dos aliciadores”, informa.
Notícia publicada no Diário do Pará Virtual , em 16 de março de 2008.
Sergio Rodrigues comenta*
O trabalho é uma das Leis da Natureza, mediante o qual o homem desenvolve o seu próprio progresso, ao mesmo tempo em que colabora com a obra da Criação. Toda ocupação útil é trabalho, ensinam os Espíritos, e uma necessidade para o homem, servindo-lhe como meio de aperfeiçoamento da inteligência. Sua conservação e seu progresso dependem do trabalho. Sem ele, o homem permaneceria na infância espiritual. Até os animais trabalham, exercendo uma atividade compatível com o grau de desenvolvimento de sua inteligência, limitada às ações indispensáveis à sua sobrevivência. Mesmo em mundos mais aperfeiçoados, o trabalho é uma necessidade, sendo sua natureza, pela evolução dos espíritos que compõem a sua humanidade, menos material do que na Terra, pois, também, menos materiais são as suas necessidades.
A ociosidade, explicam os Espíritos, seria mais um suplício do que um benefício. Por isso, até mesmo os que possuem bens suficientes para lhes assegurar a existência não estão isentos da submissão a essa lei. Conforme os meios de que dispõem, também estes têm a obrigação de se tornarem úteis aos seus semelhantes através da prática do bem. Ao mesmo tempo em que se tornam úteis, têm a oportunidade que a Justiça Divina dá a todos de aperfeiçoarem a sua inteligência.
Todavia, como tudo na nossa existência, também a Lei do Trabalho está regulada pela Suprema Sabedoria e Justiça de Deus. Em seu nome, não está o homem autorizado ao abuso, nem, principalmente, à exploração de seus semelhantes. Ensinam, ainda, os Espíritos que aquele que abusa de sua autoridade para impor ao que lhe são subordinados um trabalho excessivo, transgride a Lei de Deus. No caso da matéria em questão, não apenas constata-se o abuso pelo trabalho excessivo, como, o que é ainda mais grave e comprometedor para os responsáveis por tamanha barbaridade, não se respeita os mais elementares direitos dos trabalhadores. Na verdade, o que acontece é que aqueles homens estão sendo submetidos a uma condição análoga à de escravos. Os métodos da ação criminosa são um pouco diferentes dos outrora utilizados. Mas a intenção de explorar o trabalho do semmelhante de forma desumana e egoísta é a mesma.
A escravidão, em qualquer época, civilização ou forma em que se manifeste, é sempre um mal, pois contraria a Natureza. Não há sofisma que se possa utilizar para mascará-la como uma ação civilizada, natural. Aquele que se aproveita de semelhante recurso será sempre culpado de violação da Lei Natural, ainda que a lei humana lhe conceda artifícios para descaracterizar essa violação, como, no caso presente, uma suposta relação de trabalho. Infelizmente, essa chaga ainda mantém-se presente em nosso país, contando com a omissão e, até podemos dizer, com cumplicidade da sociedade como um todo: patrões, governantes e população em geral. A Terra fornece sempre ao homem o de que necessita para a sua conservação. Entretanto, o egoísmo, ainda fortemente presente na humanidade, faz com que alguns se cerquem da abundância, ao mesmo tempo em que a outros faltam os meios necessários à sua subsistência. Enquanto o egoísmo prevalecer, haverá esse desequilíbrio. E enquanto esse desequilíbrio persistir, haverá exploradores e explorados, pois o progresso moral nem sempre acompanha o intelectual.
*Sergio Rodrigues é espírita e colaborador do Espiritismo.Net.