Carta de mãe - Abrindo meu Coração…
Não vou começar falando do Hugo. Hugo está mais do que escrito em nosso coração e uma só carta não bastaria. Poderia sim falar de que gostaria de que houvesse menos armas, menos disparos, isso inclui os irresponsáveis disparos para cima. Que gostaria que nossas crianças pudessem ser simplesmente crianças.
Nesses dias todos em que passei no hospital e nos dias seguintes, pensamentos tomavam minha mente e Coração quando bem queriam, seja andando nos corredores do hospital, seja ao lado do Hugo, no meio da madrugada, na hora que ficava deitada ao acordar até ter forças de colocar o primeiro pé pra fora da cama ou mesmo debaixo do chuveiro. Pensamentos vêm como visitas inesperadas e mais inesperado ainda é o nosso destino. Como bem retrataram Vinícius e Toquinho, “… Não tem tempo nem piedade, nem tem hora de chegar. Sem pedir licença muda nossa vida e depois convida a rir ou chorar” . Tento colocar aqui um pouco destes pensamentos, pois acho que pode ser um pouco da minha colaboração com um Mundo tão carente e desigual.
Vi a Solidariedade das pessoas em gestos tão simples, como um copo d’água oferecido, um sorriso, um olhar que te pergunta “Como ele está agora?” e você por vezes só é capaz de dar um meio sorriso que o outro entende e vocês se abraçam. Vi guardas e médicos sensibilizados, olhos cheios de lágrimas, vontade de ajudar de alguma forma. Corações que têm que ser mais duros, para se proteger de tantas mazelas que há ali no hospital e, mais ainda no público, onde as dores são mais expostas e os recursos por vezes, limitados.
Por vezes, os médicos me olhavam assustados como quem pergunta “Mas a senhora entendeu mesmo o que está se passando?” Entendi sim, mas o que eu poderia fazer? Me desesperar? Isto estaria ajudando de alguma forma? Até o último momento, enquanto me era permitido, eu tinha que acreditar num Milagre. Fui percebendo que tinha que ser um Enorme Milagre. Passei a orar pelo que fosse melhor para meu filho.
A semana que ganhei para acariciar, beijar, massagear o Hugo e conversar, rezar e cantar para ele, me foi muito importante. Isso me encheu MUITO de Amor . Agradeço à turma do CTI por respeitar este momento.
De onde veio e vem toda essa Força , que também me surpreende? Ela vem da Fé e desse Amor. E veio um pouco de cada um que orou, torceu e acreditou. Foram muitas orações, correntes de Fé e Esperança se formando e crescendo. Sem dúvida, isso foi muito Bom para o Hugo e nos deu Força também. Ver todas as crenças, idades e cantos de dentro e fora deste País, reunidos numa grande corrente, esse foi o Nosso Milagre .
É muito estranho, você de repente é ator de um filme, do qual não sabe o enredo, que é te passado no momento exato em que está acontecendo. Me assustei ao perceber, no meio da semana, que o filme que estava acontecendo era “A Corrente do Bem.” Um filme que me emocionou há cinco anos atrás, mais do que todos que já assisti.
Pessoas do passado, de quando eu tinha os 12 anos do Hugo, surgiram. Professoras dele de escola, o pediatra que participou de sua chegada neste mundo, vizinhos, amigos, colegas, parentes distantes, anônimos até chegarmos nos esperados amigos e familiares próximos. Tanta gente, difícil enumerar…
Dentre tantas lindas correntes de que tomei conhecimento, uma que me tocou o coração foi de seus amigos e coleguinhas de Itaipu que se reuniam em orações todos os dias e confeccionavam tsurus (origamis) pela sua recuperação e um rolo de mensagens.
No dia do meu aniversário, 11 de dezembro, me prestaram uma linda homenagem. Recebi, entre pequenas lembranças, o rolo de mensagens, já com quase 25 metros, que começou a ser escrito ainda pela melhora do Hugo e, depois foi se estendo com mensagens para mim. A União dessas crianças é a coisa mais linda. E conviveram muito conosco em nossa casa. Sinto-me, sem pedir licença, meio mãe de todos eles. Recebi também, de presente, uma poesia de Bia Câmara em homenagem ao pequeno grande Hugo, a qual transcrevo abaixo.
Vi de forma bem nítida no hospital que, todos ali têm suas dores, maiores ou menores, assim como a capacidade de lidar com elas. Um repórter pediu-me que descrevesse a Dor . Creio que a dor não se descreve, a dor se sente. E, ao mesmo tempo que a Dor é algo que se tem, pode ser algo que nos falta. Todos os dias pessoas queridas se vão, por vezes de maneiras inexplicáveis, todos os dias muitos precisam do nosso apoio. Na verdade, somos todos irmãos. Sabemos que o caso do Hugo foi conhecido pela forma trágica que aconteceu, uma Vida tão nova e tão viva, interrompida num instante, por milímetros, difícil de absorver, compreender…
Vi, na realidade de um hospital público que acredito ser um dos que se encontram em melhor estado, pais sem dinheiro de passagem para visitarem seus filhos, diversas talas improvisadas com papelão, pessoas caminhando segurando seu próprio soro, empurrando as macas de seus amigos, banheiros sem papel higiênico, papel toalha ou mesmo tranca (Não foi o caso do CTI infantil, graças a Deus, bem aparelhado) entre tantas coisas que até não tomei ciência. E, me perguntava, o que leva pessoas que estão em cargos públicos com altos salários, a desviar dinheiro da Saúde, da Educação ou o que quer que seja e tirar o mínimo de dignidade a qual estas pessoas têm direito e que, em momentos tão difíceis, minimizaria um pouco tanta dor. Me perguntava qual a função de acumular tanto dinheiro e ainda por cima, roubado desta gente tão sofrida. A pergunta que ecoa é: Pra que? O que pensam os corruptos, como raciocinam ou mesmo se chegam a fazê-lo. Uma semana num Hospital Público em piores condições, faria-lhes bem, seria uma verdadeira lição de vida. Espero que alguns estejam lendo esta carta. A bala que atingiu meu filho veio de cima e é de cima que a Sociedade gostaria de ver os melhores exemplos.
As equipes médicas foram excelentes. O patrimônio humano do Hospital Municipal Miguel Couto foi maravilhoso. Quero agradecer a todos dali, incluindo guardas e o pessoal da limpeza, dos quais muitos sei os nomes, e só não os cito para não ser injusta com os demais. Gostaria de agradecer a todos conhecidos, desconhecidos, anônimos, às pessoas da Paróquia São Sebatião de Itaipu, Famílias Salesiana e Inaciana. Aos queridos amigos e vizinhos de todos os lugares por onde passamos, pediatra, professoras e funcionários das antigas escolas, amigos, clientes e colegas de trabalho e profissão. Todos que surgiram, do tempo presente e passado, os que oraram, os que escreveram mensagens, os que de alguma forma se mobilizaram, ao Dr. Paulo Niemeyer Filho. Ao Clube Botafogo e Colégio Gay Lussac pela homenagem. Agradeço à imprensa que respeitou nosso silêncio. Aos amigos próximos e familiares tão juntinhos nessa hora. Aos amiguinhos do Hugo por todo o carinho que nos foi dado. Agradeço aos que nos doze anos de existência do Hugo, alimentaram também sua Alma. Agradeço a Deus por existirem e por nos ter colocado no caminho pessoas tão maravilhosas; pela Natureza tão linda e tão presente no Parque da Colina; pelos mais de treze anos abençoados que convivemos com nosso Hugo. Como eu disse à mãe do pequeno Renan, coleguinha do Hugo na UTI: “O tempo de Deus não é igual ao tempo dos homens”. E nós, frágeis mortais, é que temos que tentar entender…
Agradeço e parabenizo você que leu até aqui. Só que ainda não acabei…
Natal: Acordei sobressaltada numa madrugada desta semana, lembrava de ter visto antes da nossa ida ao Leblon, um comercial Natalino que quando acabou eu pensei “Caramba! Eles só falaram nos presentes!” Isso me assusta, vivemos num mundo que além de desigual, a mídia leva a todos a vontade de possuir, o consumismo. O que agrava este relacionamento entre as camadas da Sociedade. O Ser é esquecido em detrimento do ter. Não se vê que o verdadeiro presente está no abraço amigo, na flor que desabrocha, na borboleta saindo de seu casulo, no sorriso de uma criança, nos olhinhos curiosos, no beijo melado e sincero? A todo dia inúmeros pequenos milagres acontecem e o homem na sua correria do ganhar para ter, não vê. Simplesmente, o milagre da Visão e da Percepção fica despercebido num canto do Coração. O que é o Natal?
O essencial do que necessitamos e que alimenta a Alma e nos dá estrutura está mais próximo do que pensamos.
Filhos são presentes de Deus, verdadeiras Bençãos (Fico feliz de sempre ter dito isso para eles), que recebemos para dar o Melhor do que temos a eles. O Melhor de Espiritual, não de material. Agora citando, Saint Exupéry, “o Essencial é invísivel aos olhos.” e não está à venda.
Falando um pouco do Hugo , Hugo sempre foi muito tudo . Muito guloso, muito teimoso, muito carinhoso, muito amigo, muito solidário, muito teatral, muito justo e muito agregador. Agregador … me peguei também pensando sobre isso… Na união de todos que foi formada.
Precisamos, mais do que nunca, dar continuidade a essa energia de Fé e Amor , não deixando que ela se dissipe no ar sem um propósito. Uma Corrente que devemos propagar.
Cada pessoa tocada e cada pequena mudança que ocorra em cada uma, será sem dúvida uma Grande Mudança para nosso Mundo tão necessitado de Fé e Solidariedade . Por ironia ou ênfase do destino, este é o tema deste ano da Árvore de Natal da Lagoa, a qual iríamos visitar, a pedido do Hugo, após a festa do Leblon.
Que a Oração de São Francisco toque a todos os Corações e possa estar presente em nossas atitudes. Creiamos e façamos. Obrigada a todos vocês.
Sandra Ronca Cavalcanti 19 de dezembro de 2007
Ao pequeno grande Hugo…
Pessoas são anjos!
Assim como você!
Um anjo que veio ao mundo… caído do ceú… Jogar bola na Terra.
Sua missão?
Mostrar a todos o quão profundo é o valor da existência.
Lembrar que o tempo, precioso tempo que se tem, vai e se esvai no instante de um “piscar de olhos”…
No “bater de asas” da bela borboleta… Num suspiro de amor!
Um anjo veio ao mundo e partiu.
No “ipi,ipi,urra” de um imponente pássaro.
Deixando o céu em festa e a Terra em luto!
Esperando que um dia, o luto vire exemplo, lembrança, lição!
Vire transformação!
Que transcenda a dor…
Na vivência do amor!
(Beatriz Câmara)
Carta publicada no site pessoal de Sandra Ronca
Sônia Zaghetto comenta*
Carta de Mãe
Há momentos em que a vida dá voltas tremendas e parece nos carregar, frágeis borboletas arrastadas pela tempestade. Em meio ao turbilhão, sem controle de absolutamente nada, o olhar vaga em busca de apoio, algo em que se possa segurar para que o mundo não desabe, para que algo da nossa estrutura sobreviva ao caos. Será assim quando morre um filho? Morre é força de expressão. Essa chama que vive em nós, que ama, que pulsa, pula de alegria ou mergulha em lágrimas – essa vive para sempre. O descartável é obra humana. No trabalho divino nada se perde. Das pedrinhas anônimas às montanhas mais imponentes, a mensagem silenciosa da natureza é a renovação. A morte é transformação. Deixa-se o casulo obscuro e ganha-se toda a maravilha dos mundos. Não mais a prisão pequena, mas o universo que se abre diante de nós. Majestade e esplendor. É a vida que vibra, vitoriosa, no concerto de planetas e estrelas que enchem o espaço.
Mas para quem fica, que resta? Lágrimas, uma dor que dilacera, o coração estrangulado? Sim, mas há também quem, em meio à avalanche da dor, descubra diamantes e poesia.
Sandra - a mãe do menino Hugo, vítima de bala perdida no Rio de Janeiro – soube ultrapassar os limites da dor pessoal para oferecer à coletividade a chance de repensar vida e circunstâncias. Sem ódio, sem revolta. Dor visível, mas mansa, como canção triste, que leva a gente a pensar que não estamos sós, que esse organismo vivo que é a sociedade precisa olhar para si mesmo e reinventar os dias.
Na carta aberta, a que ela deu o nome de “Abrindo meu Coração…” essa mãe ferida pela tragédia materializa para todos nós a mensagem do amor ao próximo: ela pensa menos em si e mais em colaborar para que o mundo em que vivem outras crianças não seja tão carente e desigual.
Lição de quem aprendeu o alfabeto completo da solidariedade. A dor não é exclusiva. Todos sofremos, mas a tendência humana é particularizar o sofrimento, recolher-se e encolher-se, mergulhar na casca para não lembrar, não pensar. Sandra fez o oposto. Foi capaz de preocupar-se com a tragédia coletiva. Ergueu os olhos da dor que a dilacerava e contemplou o mundo. E foi além: em meio ao turbilhão, ela também viu solidariedade em gestos simples, sensibilidade em muita gente. Soube louvar as orações de pessoas de todas as crenças e idades e conseguiu reconhecer que, ao seu lado, outros corações também viviam abatidos pela dor, pela doença, pelo medo, pela sombra da morte.
Um trecho da carta merece destaque: “Por vezes, os médicos me olhavam assustados como quem pergunta “Mas a senhora entendeu mesmo o que está se passando?” Entendi sim, mas o que eu poderia fazer? Me desesperar? Isto estaria ajudando de alguma forma? Até o último momento, enquanto me era permitido, eu tinha que acreditar num Milagre. Fui percebendo que tinha que ser um Enorme Milagre. Passei a orar pelo que fosse melhor para meu filho. A semana que ganhei para acariciar, beijar, massagear o Hugo e conversar, rezar e cantar para ele, me foi muito importante. Isso me encheu MUITO de Amor ”.
Há uma riqueza imensa nesse trecho. Um primeiro ponto: entender que diante do inevitável o desespero só prejudica. Falar é fácil, mas na hora em que a dor sufoca, quem de nós faz isso? Mantém a serenidade, abaixa a voz, continua no domínio de si mesmo? Sandra fez. E com isso provou que a maior dor do mundo pode ser vivenciada com calma, sem atormentar os outros que já experimentam uma rotina de tormentas nos hospitais.
Segundo ponto a destacar: a esperança não morre jamais. Não é a última a morrer. Ela fica viva, agita-se no coração da gente. Sandra esperou por um restabelecimento orgânico que não veio, mas não mencionou jamais a perda da esperança. Ao contrário, mostrou que é possível confiar tanto em Deus que até orou para que acontecesse o melhor para o filho. Confiança ilimitada. Fé e coragem à toda prova.
Terceiro item importante: saber aproveitar cada instante da vida. Sandra não disse que o filho “durou uma semana”. Ela escreveu exatamente o contrário: ganhou uma semana para beijar, abraçar, despedir-se, rezar e cantar para Hugo. Sábia Sandra, que atribuiu à fé a força que sentiu e sente. Sábia Sandra, que subverteu a ordem das coisas a que nos acostumamos para, sem qualquer intenção de dar lições, nos ensinar tantas coisas.
Essa mulher corajosa – justo quando estava no olho do furacão – descobriu a grande verdade que nos une: somos todos irmãos. Que nos custa atender ao pedido dela e ao sonho agregador de seu menino que se mudou para o mundo espiritual? Por eles dois e por nós sejamos mais fraternos, mais solidários, mais carinhosos, mais tolerantes. O que Sandra nos pede é exatamente o destino que Deus traçou para nós: amar. Amar intensamente. Amar a todos. Amar muito. Amar sem esperar retribuição. Amar tanto que nos descobriremos irmãos das estrelas e das pessoas, integrados à criação divina.
Só assim, embebidos desse amor tão pleno, conheceremos a felicidade para a qual fomos criados.
*Sônia Zaghetto é jornalista e colaboradora do Espiritismo.net.