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  • A Doutrina Espírita é dogmática?

É comum a afirmação de que a Doutrina Espírita não possui dogmas Antes de refletir a respeito se faz necessário compreender a definição da palavra. De acordo com o dicionário Oxford, dogma é o ponto fundamental de uma doutrina religiosa, apresentado como certo e indiscutível. A palavra dogma, em grego, significa o que se pensa ser verdade, fundamentado em princípios

É comum a afirmação de que a Doutrina Espírita não possui dogmas.

Antes de refletir a respeito se faz necessário compreender a definição da palavra. De acordo com o dicionário Oxford, dogma é o “ponto fundamental de uma doutrina religiosa, apresentado como certo e indiscutível”. A palavra dogma, em grego, significa “o que se pensa ser verdade”, “fundamentado em princípios”

O codificador Allan Kardec, na obra “O Livro dos Espíritos”, destacou como subtítulo em sua página de rosto que o livro trata dos “Princípios da Doutrina Espírita” e destaca: “Sobre a imortalidade da alma, a natureza dos Espíritos e suas relações com os Homens, as Leis Morais, a Vida Presente, a Vida Futura e o Porvir da Humanidade”. No item IX da Conclusão deste mesmo livro encontra-se uma mensagem de Santo Agostinho: “Notai que os princípios fundamentais são os mesmos por toda parte e vos hão de unir num pensamento comum: o amor de Deus e a prática do bem.”

No item 6 da Introdução de “O Livro dos Espíritos”, Allan Kardec elenca os Princípios em que a Doutrina Espírita se fundamenta: Existência de Deus e Sua obra; Existência e Imortalidade da Alma; Evolução dos Espíritos; Pluralidade das Existências e Pluralidade dos Mundos Habitados; Comunicabilidade dos Espíritos e Moral dos Espíritos Superiores. Por serem pontos fundamentais da Doutrina, de acordo com o dicionário, estes são, então, seus dogmas.

O próprio codificador, em suas considerações à questão 222 de “O Livro dos Espíritos” expressa de forma muito clara: “o dogma da reencarnação” e “o dogma da pluralidade das existências corporais”.

Sobre a crítica que se possa fazer acerca do dogma, na edição de janeiro de 1866 da Revista Espírita 2, em um artigo sobre a prece no Espiritismo, encontramos a reflexão: “Contestando um dogma, não se põe em oposição senão com a seita que o professa.”

Diante de todas estas afirmativas, conclui-se que: sim, a Doutrina Espírita possui dogmas.

Mas de onde teria vindo a confusão que originou a reiterada frase de que o Espiritismo não é dogmático? E o que há de tão negativo no dogma?

A origem da confusão é desconhecida, mas existe a possibilidade de provir de uma interpretação distorcida da obra de Platão. A palavra grega dogma já era utilizada pelo filósofo em suas obras. Em “República”, encontramos: “Temos desde a infância dogmas [dogmata] sobre as coisas justas e belas que(…) temos o hábito de seguir e de respeitar.” Alguns críticos mais apaixonados sobre a questão do dogma o analisam à luz de “O Mito da Caverna” de Platão - o mundo das sombras descrito pelo filósofo seria o comportamento dogmático, ou seja, um mundo em que o homem não buscaria o conhecimento.

A defesa da premissa do Espiritismo sem dogma chega ao extremo de definir dogma como um sistema de opiniões o que, como já vimos no início deste artigo, são definidos como princípios fundamentais.

Há, ainda, aqueles que associam o dogma com a falta de racionalidade ou fé cega.

Se faz relevante uma breve análise sobre o que é a fé raciocinada antes de persistir na associação entre esta e a ausência de dogma. Para crer-se em algo se faz necessário compreendê-lo, caso contrário, é apenas uma crença sem fundamento. Em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, cap. XIX – A Fé transporta montanhas – item 7 – Condição da fé inabalável – Kardec escreve: “A fé necessita de uma base, base que é a inteligência perfeita daquilo em que se deve crer. E, para crer, não basta ver, é preciso sobretudo, compreender. A fé cega já não é deste século, tanto assim que precisamente o dogma da fé cega é que produz hoje o maior número dos incrédulos, porque ela pretende impor-se, exigindo a abdicação de uma das mais preciosas prerrogativas do homem: o raciocínio e o livre arbítrio.” (…) “A fé raciocinada, por se apoiar nos fatos e na lógica, nenhuma obscuridade deixa.” E termina: “Fé inabalável só o é a que pode encarar de frente a razão, em todas as épocas da Humanidade.”

Ou seja, o argumento de que o Espiritismo não seria dogmático porque se baseia na busca constante do conhecimento pelo questionamento filosófico, na sua comprovação pela metodologia científica, sempre norteado pelos ensinamentos morais de Jesus é infundado já que, justamente por esta base que expomos acima, qual seja, Filosofia/Ciência/Religião, é que a Doutrina Espírita propõe a fé raciocinada baseada em seus princípios fundamentais que seriam os seus dogmas.

Observe o leitor que há uma confusão generalizada entre associar dogma com estagnação de conhecimento quando se nota que a visão é justamente o contrário: ao ampliar seu conhecimento se faz necessário ao homem que se apoie em princípios que irão ajudá-lo na maturação do raciocínio que o levará a novos conhecimentos e, assim, sucessivamente. Novamente, devemos recorrer ao significado das palavras: princípio, segundo o Dicionário Oxford, é “o que serve de base a alguma coisa; causa primeira, raiz, razão.”

A Teoria do Conhecimento, área de estudo da Filosofia e da Psicologia, que discute como é possível ao ser humano chegar ao conhecimento, traz em uma de suas vertentes o “conhecimento crítico” que questiona as bases e as crenças do conhecimento, ou seja, os princípios deste conhecimento. Isto não significa que o conhecimento se faz sem princípios, ou seja, não há construção de conhecimento sem uma causa primária que dê o start.

Muito se fala em progressismo, sem se estudar verdadeiramente as obras básicas. Na dissertação espírita intitulada “A fé” publicada na Revista Espírita de agosto de 1865 3, o Espírito Demeure traz uma reflexão magnífica sobre a evolução da fé cega para a fé raciocinada. Segundo ele, a fé cega foi um “véu momentâneo sobre a razão que começa a desenvolver-se e vacila nas trevas do Espírito. Ela conduzi-lo-á através das idades da simplicidade e far-se-á mestra pelas revelações. Mas, não estando ainda o raciocínio bastante amadurecido para discernir o que é justo do que é falso, para julgar o que vem de Deus, ela arrastará o homem para fora do reto caminho, tomando-o pela mão e pondo-lhe uma venda nos olhos. (…) Essa virtude desaparece quando a alma, pressentindo que pode ver com seus próprios olhos, a afasta e não mais quer marchar senão com a sua razão. Esta a ajuda a desfazer-se das crenças falsas que ela havia dotado sem exame.”

Demeure finaliza a mensagem nos alertando para que assentemos “a fé sobre as bases sólidas da razão”. Assim, é pela fé raciocinada amparada pelos princípios fundamentais (dogmas) da Doutrina Espírita, associada aos questionamentos e ao trabalho e guiada pelo ensino moral do Cristo que conseguiremos construir o alicerce da “felicidade” em nós como Jesus nos legou no discurso das Bem Aventuranças.

Ana Claudia Marino, trabalhadora do Espiritismo.net nas tarefas do Atendimento Fraterno e Evangelho no Lar Online, e palestrante e coordenadora de grupo de estudos no Centro Espírita Amor e Caridade, de Jacareí/SP.

Referências Bibliográficas

Dicionário grego - http://perseidas.fclar.unesp.br/3x/ - consulta realizada em 15/08/2023

Disponível em https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/900/revista-espirita-jornal-de-estudos-psicologicos-1866/5890/janeiro/consideracoes-sobre-a-prece-no-espiritismo . Consulta realizada em 15/08/2023.

Disponível em https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/899/revista-espirita-jornal-de-estudos-psicologicos-1865/5829/agosto/dissertacoes-espiritas/a-fe . Consulta realizada em 15/08/2023.

PLATÃO. A República. Ed. Lafonte, 1º edição, 2017.

PLATÃO. O Mito da Caverna. Ed. Edipro, Edição de Bolso, 2015.

KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Tradução de Guillon Ribeiro da 3. ed. francesa, revista, corrigida e modificada pelo autor em 1866. 131 ed. –Brasília: FEB, 2019.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos: filosofia espiritualista / recebidos e coordenados por Allan Kardec. Tradução de Guillon Ribeiro. 93. Ed. – 8. Imp. – Brasília: FEB, 2019.