Sofrimento e Justiça.
Em 1687 foi publicada uma das mais importantes obras do pensamento moderno: Philophiae Naturalis Principia Mathematica, de Sir Isaac Newton. Trata-se de um composto de três livros: De Motu Corporum Primus (Do Primeiro Movimento dos Corpos), De Motu Corporum Secundus (Do Segundo Movimento dos Corpos) e De Mundi Systemate (Do sistema mundial). No primeiro livro, Newton apresenta as Definições e Axiomas ou Leis do Movimento, as quais constituem os fundamentos da teoria mecânica newtoniana.
Em modo geral, Sir Isaac define que o Universo pode ser explicado como a ação de dois tipos de forças sobre as massas, ou quantidades de matéria existentes nos corpos, fazendo-as movimentar-se no espaço com a mudança do tempo.
Newton propôs a existência de dois tipos de forças: as forças ínsitas - aquelas que são inerentes aos corpos; e as forças impressas - aquelas que são externas aos corpos e que, quando aplicadas, causam alterações na sua “quantidade de movimento”. Das definições e axiomas apresentados por Newton, derivam-se as conhecidas leis do movimento:
a) Todo corpo em repouso ou em movimento retilíneo uniforme mantém seu estado de inércia - devido à força ínsita.
b) A mudança de movimento é proporcional à força motriz impressa. QUe diz que os corpos mudam sua quantidade e direção de movimento pela aplicação de forças externas a ele.
c) O que quer que prima ou puxe outra coisa, outro tanto será por ela premido ou puxado.
Esta última lei do movimento é geralmente conhecida como lei de ação e reação e didaticamente apresentada como: A toda ação corresponde uma reação de igual força, mesmo sentido e direção contrária.
Com base nesses conceitos Newton explicou grande parte dos movimentos observáveis em seu tempo e definiu o modelo mecanicista como uma das mais exitosas teorias da física.
Em 1854, ao ter contato com os chamados fenômenos da mesas girantes, o professor Denizard Rivail concluiu que os efeitos mecânicos do movimento das mesas poderiam ser explicados pela aplicação das leis newtonianas do movimento, acrescidas do entendimento das forças elétrica e magnética, fazendo com que as mesas pudessem se movimentar sem contato. Ao deparar-se com um efeito inteligente: o fato das mesas responderem perguntas, Kardec concluiu que um fenômeno inteligente necessitaria de uma causa inteligente e, a partir desta premissa, identificou como causa a manifestação dos Espíritos, de cuja investigação decorreu a Doutrina Espírita ou Espiritismo.
Na primeira obra apresentada por Rivail sob o pseudônimo de Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, encontramos a referência a um axioma que aplicais às vossas ciências: “não há efeito sem causa”. E depois de estabelecer o conceito de Deus à luz do Espiritismo como “Inteligência suprema e causa primária de todas as coisas”, Kardec argumenta que dentre os atributos inerentes à Deus estão a onipotência e a soberanidade de amor e justiça (Deus é infinitamente justo e bom). E desdobrando os conceitos da justiça de Deus, o Espiritismo estabelece que o progresso é decorrente do esforço humano para compreender a natureza (progresso intelectual) e a prática das leis morais (progresso moral), mas que os Espíritos progridem por meio de experiências diversas encarnação, que lhes é imposta por Deus com o fim de fazê-los chegar à perfeição (O Livro dos Espírito, item 132). Por esse motivo, a necessidade de progredir, os Espíritos que sofrem as provas de uma nova existência, uma nova encarnação para prosseguir o seu processo de aperfeiçoamento (O Livro dos Espírito, item 166).
O conceito de encarnação e de reencarnação apresenta-se como consequência da necessidade de progresso, e por isso Kardec afirma nos comentários ao item 171 de O Livro dos Espíritos:
“A doutrina da reencarnação, isto é, a que consiste em admitir para o Espírito muitas existências sucessivas, é a única que corresponde à idéia que formamos da justiça de Deus para com os homens que se acham em condição moral inferior; a única que pode explicar o futuro e firmar as nossas esperanças, pois que nos oferece os meios de resgatarmos os nossos erros por novas provações. A razão no-la indica e os Espíritos a ensinam.”
Mas para compreendermos a doutrina da reencarnação, face à justiça de Deus, é necessário tratarmos do problema das provas e das expiações em relação à lei de justiça, amor e caridade, expressões da suprema justiça e bondade de Deus.
Em primeiro lugar precisamos de algumas definições didáticas:
· ** Prova ** - é uma experiência a que o Espírito se submete para avaliar o seu aprendizado das leis divinas na forma de comportamentos ou inteligência. Então temos provas intelectuais e provas morais. As provas intelectuais nos aproximam da verdade e as provas morais nos fazem avançar na prática do bem diante das leis divinas. Uma prova é uma experiência de aprendizado para avaliar o quanto estamos seguros de conceitos ou de comportamentos.
· Expiação - é uma experiência na qual o Espírito sofre as consequências do que fez ou deixou de fazer e difere das provas por ter uma relação direta com causas atuais ou anteriores. Em geral a expiação é uma aflição ou sofrimento que decorre das ações e escolhas do Espírito neste ou em encarnações anteriores e ele as suporta como mecanismos de correção que lhe permitem aprender a Verdade e modificar seus comportamentos pelo aprendizado de experiências dolorosas, tanto no mundo físico quanto espiritual. Pela expiação o Espirito compreende os erros praticados. No processo de arrependimento, isto é, após ter reconhecido os erros que cometeu ele compreende que o seu sofrimento decorre de suas próprias ações e necessidades de correção.
Vemos que as expiações têm suas causas em nossas escolhas e ações, mas as provas são experiências que podem ocorrer apenas para nosso melhoramento, sem que tenhamos nada a dever às leis divinas exceto nossa necessidade de progredir.
É comum, nos que estamos aprendendo o Espiritismo, a confusão entre provas e expiações e a inadequada aplicação do conceito de causa e efeito às questões morais.
Muitos aprendizes do Espiritismo raciocinam que todo sofrimento é causado por um erro - nesta ou em vidas passadas - e que toda dificuldade pode ser explicada como sendo uma expiação, ou seja: estamos pagando algo que fizemos nesta ou em vidas passadas. O conceito é normalmente referido como lei de causa e efeito (por analogia ao conceito newtoniano) ou lei de ação e reação.
Nem todo sofrimento é uma expiação, nem toda dificuldade é consequência do que fizemos, ou deixamos de fazer, no passado. Mais ainda: não temos como estabelecer uma relação direta de causalidade afirmando que se uma pessoa está sofrendo é porque, no passado, causou sofrimento ou infligiu dores. Existem as provas! Podemos passar por dificuldade por escolhas pessoais, para testar nosso progresso moral, para servir de exemplo para outras pessoas, para fortalecer virtudes adquiridas etc.
De fato, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, Allan Kardec [1] afirma: “De duas espécies são as vicissitudes da vida, ou, se o preferirem, promanam de duas fontes bem diferentes, que importa distinguir. Umas têm sua causa na vida presente; outras, fora desta vida.”
Quando dizemos que se alguém foi roubado é por quê no passado roubou alguém, estamos aplicando inadequadamente o conceito de ação e reação, também chamado lei de causa e efeito.
Ora, a lei de Deus não é apenas de justiça. A lei moral apresentada pelos Espíritos é de Justiça, Amor e Caridade - portanto uma só lei, conforme cap. XI de O Livro dos Espíritos [2].
A expiação é decorrente da Justiça, mas sua aplicação não é mecânica como na referência newtoniana. Da mesma justiça que emana a expiação, estabelece-se as provas, que são instrumentos de progresso sem que o Espírito precise pagar coisa alguma no campo moral.
Vemos então que:
· Sempre que enfrentamos uma dificuldade ou sofrimento estamos diante da justiça divina, que também é amor e caridade infinitos, e que o objetivo almejado é o de nossa melhoria espiritual.
· Alguns sofrimentos são decorrentes de nossas atitudes, nesta ou em outras vidas, e ocorrem para que possamos compreender as dores e sofrimentos infligidos a outrem, mas que não precisam ser as mesmas dores e sofrimentos! Podemos expiar nossos erros por meio de ações de trabalho e esforço de atender ao próximo, e nestes casos experimentamos sofrimentos morais pela empatia que desenvolvemos, pelos esforços que empregamos em resolver problemas que afligem pessoas ou sociedades. Lembremo-nos de que a Justiça Divina nos impõe o aprendizado das Leis Divinas e não o pagamento de dívidas sem o correspondente aprendizado!
· Outros sofrimentos e aflições são provas escolhidas pelo Espírito, ou a ele impostas, para o aperfeiçoamento de suas conquistas morais ou para a consolidação de missões sacrificiais de amparo e exemplificação.
Tenhamos em mente que a melhor forma de compreender a lei de causa e efeito moral é pensarmos: todo efeito tem uma causa, mas não sabemos como determiná-la diretamente. Se formos roubados, pode ser que a causa deste sofrimento seja um pedido nosso para exemplificar que aprendemos as lições de resiliência e de paciência diante das dificuldades. Se sofremos um grave sofrimento moral no campo da violência, das agressões morais etc. pode ser que estejamos diante de uma expiação, mas também pode dar-se por estarmos sendo testados - e a nosso próprio pedido - para verificar se já compreendemos as leis divinas e estamos capacitados para vivenciá-las!
Sigamos, aprendendo com as lições dos Espíritos e refletindo sobre este manancial de entendimento que é a Doutrina Espírita. Mas sem a precipitação de explicar o mundo pela lei de causa e efeito, como se fosse a aplicação mecânica da terceira lei de Newton aos fenômenos do mundo espiritual.
andrehsiqueira@espiritismo.net
** REFERÊNCIAS**
KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Tradução de Guillon Ribeiro. 112a. ed. Brasília: FEB, 1996.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Guillon Ribeiro. 76a. ed. Brasília: FEB, 1995