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Na pequena cidade francesa de Tours havia uma praça. Eu sei, essa afirmação parece absurda, afinal todas as cidades possuem praças aos montes, entretanto, havia uma praça ali que é toda especial. A praça das Artes. A praça das Artes era encantadora, ali se respirava um perfume sóbrio de múltiplas fragrâncias que compunha um harmonioso aroma, o chão de pedrisco suavizava o caminhar e arrancava um som gostoso de se ouvir, ao lado da praça corria o rio Loire calmo e seguro de si, deixava sem enfado os cisnes brincar em suas águas. Era uma alegria vê-los majestosos dançando pelas águas…

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“Tomem coragem; a jornada é longa, o caminho é rude, mas a meta é esplêndida.”

Léon Denis

Na pequena cidade francesa de Tours havia uma praça. Eu sei, essa afirmação parece absurda, afinal todas as cidades possuem praças aos montes, entretanto, havia uma praça ali que é toda especial. A praça das Artes.

A praça das Artes era encantadora, ali se respirava um perfume sóbrio de múltiplas fragrâncias que compunha um harmonioso aroma, o chão de pedrisco suavizava o caminhar e arrancava um som gostoso de se ouvir, ao lado da praça corria o rio Loire calmo e seguro de si, deixava sem enfado os cisnes brincar em suas águas. Era uma alegria vê-los majestosos dançando pelas águas.

Ali, nessa praça, havia uma casa de dois andares, cela de um sábio, o sábio de Tours. O visitante, ao chegar no prédio, subia pelas escadas, com uma certa timidez, degrau a degrau, meditando nas palavras a dizer, na melhor forma de se apresentar. Batiam a porta e aguardavam, muito provavelmente com o olhar vagueante tentando penetrar os mistérios do infinito que se abririam com a porta.

Após os cumprimentos da doce e atenta Georgette, a governanta, ela anunciava que o velho sábio receberia o visitante, ao aproximar da porta da sala de visita, ouvia-se uma voz grave e terna:

  • Entrai, entrai amigo.

Muito embora a fronte nevoada de alvura conquistada com o longo de tempo de vida, a sua face era carregada de juventude e primavera. Apesar da cegueira, os seus olhos eram carregados de luz e mistério, seu olhar era como uma sonda que disseca os mais profundos oceanos. O olhar impactava e gerava uma repercussão ao mesmo tempo reconfortante e incômoda.

A sala era composta de maneira sóbria e elegante, alguns tapetes, vasos chineses, alguns deles floridos, algumas telas e reproduções de peças de uma personagem que se impunha no cômodo de maneira marcante e devocional. A virgem de Doremy, Joana D’arc. Ela era representada em telas, tapeçaria e esculturas, uma aliás, era enfeitada com sempre vivas amarelas que compunha um quadro harmonioso que inspirava afeição e amor.

Sua fala, muito embora grave, era suave, melodiosa e segura. A sua memória era filha dos milênios. De cabeça ele recitaria as tríades bárdicas, os poemas de Homero, as histórias de Tulcíades e Heródoto, traria a baila os diálogos platônicos, os versos de ouro de Pitágoras. Arrancar-nos-ia as lágrimas ao narrar a história de Krishna e seu pupilo Árjuna. Elevar-nos-ia as alturas com os tratados de Hermes. No entanto sua voz adquiriria um contorno de menestrel ao recitar o sermão do monte e as parábolas do Cristo. Ver-mos-ia ele choroso ao recordar as histórias da sua amada Joana D’arc, a pastora humilde que as ambições humanas não entenderam e martirizaram.

Passaríamos dias mudos ouvindo-o. Ali, a fartura era de espírito e verdade, como se a deusa Atena houvesse soprado sabedoria aos seus ouvidos. Ele falava com empolgação e alegria, ele era jovem ao falar, vez ou outra, saía uma anedota, uma sofisticada ironia.

Léon Denis, eis o seu nome, possuía uma alma piedosa, não raras vezes chorava ao ouvir as agruras de uma mãe que perdera um filho. Se mobilizava ao extremo para angariar recursos para os pobres, para aquecer os desvalidos no inverno, sempre com modéstia. E os suicidas? Era comovente vê-lo orando até as lágrimas por eles. Quantas vezes ele não os socorreu nas seções espíritas? Nunca os julgou, os ouvia com ternura paternal. Muitos criminosos os buscavam e se surpreendiam ao confessar seus crimes e não ouvir nenhum julgamento ou repreensão, porém estímulo a renovação, tão qual o episódio do Cristo com a chamada pecadora que ele devolvera a dignidade.

Sim, Denis era espírita. Talvez só isso não basta para descrevê-lo, acrescento pois, que ele era um verdadeiro espírita, um bom espírita, tão qual Allan Kardec havia analisado em o Livro dos Médiuns[1] e no Evangelho Segundo o Espiritismo[2]. Denis amava a humanidade com tamanha devoção que a nossa alma se prostrava de joelhos diante de tamanha autoridade. Autoridade que emana dos que amam e servem.

Allan Kardec era uma personagem sempre presente em suas memórias. Provavelmente diria ele:

  • Eu me tornara cético e descrente, até o encontro da obra do Mestre Allan Kardec aos dezoitos anos de idade. Caminhava pela rua Nacional, ali havia uma livraria que rotineiramente visitava, as suas vitrines me conheciam como um amigo reconhece o outro ao longe. Ao penetrar a livraria e percorrer com os olhos as novas publicações espantei-me com um livro, o Livro dos Espíritos! A obra me atraiu como um todo, apanhei-a e comecei a leitura. Pronto, achei as respostas ao terminar a introdução da obra, ali mesmo, na livraria. Ouvi Allan Kardec pela primeira vez em Tours, onde ele proferiu uma conferência sobre o drama das obsessões, depois em Bonneval e, por último, em Paris, em sua casa, ali percebi que estava diante de uma alma antiga que se ligava ao meu destino pela noite dos tempos. Mestre, eis o que é Allan Kardec para a humanidade vindoura. Ali intui que deveria o seguir e propagar a nova crença, coisa que mais tarde foi-me revelado por diversos médiuns, de diferentes lugares, todos desconhecidos entre si.

Seus olhos adquiria uma luz ardente como de uma chama sagrada ao recordar de Allan Kardec, sua voz se tornava grave como o rugido de um trovão, como um profeta investido de uma grande revelação. Era o discípulo recordando o mestre. Era o bardo sorvendo a sabedoria do seu Druida.

Os seus conselhos eram precisos, carregados de compaixão emanado de sua alma sensível e piedosa. Afastava qualquer tipo de reconhecimento que lhe exaltasse a personalidade, devotava atenção integral a quem lhe buscasse, ouvia com cuidado e acuidade de um sofisticado instrumentista que quer arrancar o melhor som do instrumento.

Lutas enormes foram empreendidas por ele. Maledicências, traições de toda sorte, sarcasmos e indiferenças, tudo ele suportou com silêncio e resignação. Orava constantemente pelos seus malfeitores. Eles eram muitos, alguns inclusive frequentaram a sua casa e, ao sair, propagavam injúrias na surdina. Denis era um gigante moral, um carvalho milenar carregado com as bolotas da sabedoria!

Ele nunca se seduziu pelos palcos eivados de aplausos e gargalhadas torpes. Não raras vezes ele foi convidado pelo fascínio transitório do dinheiro, do poder, da beleza passageira e das glórias vans. Resistiu a tudo com dignidade. Ele buscava a tranquilidade da consciência, isso lhe bastava!

O que encantava era o comprometimento com os que lhe buscavam. Todas as cartas eram respondidas com alegria e devoção aos remetentes, até mesmo os que lhe dirigiam tintas de colorido sarcástico e ofensivo. Ao findar uma conferência, atendia a todos, muito embora a idade avançada, a debilidade física, a cegueira que lhe acompanhava como uma marca viva da sua dignidade moral e amor a vida.

Sim, Denis nos é um exemplo que lembra os grandes mártires do cristianismo nascente, os mártires das antiga Lugdunum que entregava a vida por amor a causa, por amor a verdade.

Que sua suave luz alcance-nos e aqueça-nos o coração de idealismo para a grande causa do espiritismo. Que sejamos nós, os espíritas novos, luzes nesses dias de treva densa, ascendendo os archotes da humildade, da verdade e do desinteresse pessoal.

[1] O Livro dos Médiuns, item 28.

[2] O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. 17, item 4.

Nota: A foto usada nesta publicação é na cidade de Tours, porém a Praça das Artes, bem como a residência de Leon Denis, foram destruidas durante a Segunda Guerra Mundial.